Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Rafael olhou para ele pela
primeira vez. Dispensava a aula de História. Conhecia aquele argumento há
décadas. Pagam-te para ensinar isso?, provocou com menosprezo. Depois de décadas
de escavações, de sorrisos, de ilusões, de ansiedade, o que é que eles
encontraram?, deixou a pergunta no ar, ignorando a ironia de Rafael. Jacopo fez
, um círculo com o indicador e o polegar. Zero, proclamou triunfante. Nada. Nada?,
questionou Rafael. Nada de nada, reiterou Jacopo. Não encontraram absolutamente
nada que comprovasse um só facto narrado no Antigo e no Novo Testamento. E chegaram
a outra conclusão: aparecem nomes de personagens e de locais na Bíblia de que
nem gregos nem romanos alguma vez ouviram falar. Só são mencionados naquele
livro e em mais lado nenhum.
4 de Janeiro de 2003, disse
Rafael. Descoberta de um bloco de pedra calcária com inscrições em fenício
antigo com um plano pormenorizado para a recuperação do primeiro templo judeu,
o do rei Salomão. Foi encontrada no Monte do Templo, na cidade velha de
Jerusalém. Ou Haram al Sharif, como lhe chamam os muçulmanos, acrescentou Jacopo
visivelmente agradado. O fragmento datava da época do rei bíblico Joás, que
reinou há mais de 2500 anos. Se és tão versado na Bíblia então deves
recordar-te do capítulo 12, dos versículos 4, 5 e 6, mais especificamente, do
Segundo Livro dos Reis, onde se relata que Joás, rei de Judá, ordenou que
juntassem todo o dinheiro recolhido no templo para ser utilizado na sua
reparação. Alegadamente, proferiu Jacopo com um sorriso. Nunca me deixaram ver tal
descoberta. Nem houve mais notícias.
1961, prosseguiu Rafael. A
escavação de um anfiteatro antigo, mandado erigir por Herodes, o Grande, em
Cesareia, no ano 30 antes de Cristo Nosso Senhor, revela um bloco de calcário,
aceite como autêntico. Nele encontra-se uma inscrição parcial. Jacopo e Rafael
citam-na ao mesmo tempo.
DIS AUGUSTIS TIBERIEUM
PONTIUS PILATUS
PRAEFECTUS IUDAEAE
FECIT DEDICAVIT.
Jacopo aplaude a sorrir. A Pedra de Pilatos. Um aplauso, caro senhor. Só comprova a existência de Tibério e Pilatos, que nunca esteve em dúvida, e confirma que o posto de Pôncio Pilatos era de prefeito, ou seja, governador e não procurador, argumentou Jacopo. Tens mais? É um trabalho em evolução. Não esqueças que estamos a falar de milénios de história em cima de história em curso. Mas nunca se sabe quando poderão aparecer novos elementos e tu, melhor que ninguém, sabes como é um trabalho moroso. Jacopo levantou os braços e abriu as mãos. Voltem sofistas. Estão perdoados.
Uma chuva miudinha acolheu-os
assim que puseram o pé no exterior do terminal, limpando-lhes o rosto e
agarrando-se à roupa. Que raio de tempo, protestou Jacopo. A Sûreté enviara um carro
para os levar ao local onde Zafer fora encontrado por um drogado que procurava
um local privado para subir às alturas. Em vez disso encontrou um velho
estendido no chão, inerte, de barriga para baixo, sem vida. O armazém ficava a
norte da cidade, longe do bulício turista, das luzes que lhe davam o epíteto.
Um conjunto de projectores, alimentados por um gerador que fazia um ruído
monumental, iluminava o exterior e interior do armazém. O cadáver já tinha sido
recolhido durante a tarde. A perícia recolhera todos os elementos que pudessem
revelar mais sobre o criminoso, porque o resto fora bastante claro. Zafer fora
atraído ao local de livre e espontânea vontade, levara uma tareia e, por fim,
uma injecção de prussiato acabara com o seu sofrimento. Algumas pessoas,
vestidas à civil, vagueavam pelo local em algum afazer descontextualizado para
quem estava de fora. Outras apenas conversavam sobre o jogo da selecção
gaulesa, antevendo o final do longo dia de trabalho.
Rafael
Santini?, chamou um homem de gabardina creme e cigarrilha na boca. Rafael foi
retirado do mundo de probabilidades e especulações onde estava e levantou-se. O
próprio. O senhor é o inspector Gavache? Efectivamente. Estendeu a mão a selar
o conhecimento entre dois desconhecidos». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada,
Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.
Cortesia de PEditora/JDACT
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