quinta-feira, 26 de novembro de 2020

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «4 de Janeiro de 2003, disse Rafael. Descoberta de um bloco de pedra calcária com inscrições em fenício antigo com um plano pormenorizado para a recuperação do primeiro templo judeu…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005

«(…) Rafael olhou para ele pela primeira vez. Dispensava a aula de História. Conhecia aquele argumento há décadas. Pagam-te para ensinar isso?, provocou com menosprezo. Depois de décadas de escavações, de sorrisos, de ilusões, de ansiedade, o que é que eles encontraram?, deixou a pergunta no ar, ignorando a ironia de Rafael. Jacopo fez , um círculo com o indicador e o polegar. Zero, proclamou triunfante. Nada. Nada?, questionou Rafael. Nada de nada, reiterou Jacopo. Não encontraram absolutamente nada que comprovasse um só facto narrado no Antigo e no Novo Testamento. E chegaram a outra conclusão: aparecem nomes de personagens e de locais na Bíblia de que nem gregos nem romanos alguma vez ouviram falar. Só são mencionados naquele livro e em mais lado nenhum.

4 de Janeiro de 2003, disse Rafael. Descoberta de um bloco de pedra calcária com inscrições em fenício antigo com um plano pormenorizado para a recuperação do primeiro templo judeu, o do rei Salomão. Foi encontrada no Monte do Templo, na cidade velha de Jerusalém. Ou Haram al Sharif, como lhe chamam os muçulmanos, acrescentou Jacopo visivelmente agradado. O fragmento datava da época do rei bíblico Joás, que reinou há mais de 2500 anos. Se és tão versado na Bíblia então deves recordar-te do capítulo 12, dos versículos 4, 5 e 6, mais especificamente, do Segundo Livro dos Reis, onde se relata que Joás, rei de Judá, ordenou que juntassem todo o dinheiro recolhido no templo para ser utilizado na sua reparação. Alegadamente, proferiu Jacopo com um sorriso. Nunca me deixaram ver tal descoberta. Nem houve mais notícias.

1961, prosseguiu Rafael. A escavação de um anfiteatro antigo, mandado erigir por Herodes, o Grande, em Cesareia, no ano 30 antes de Cristo Nosso Senhor, revela um bloco de calcário, aceite como autêntico. Nele encontra-se uma inscrição parcial. Jacopo e Rafael citam-na ao mesmo tempo.

DIS AUGUSTIS TIBERIEUM

PONTIUS PILATUS

PRAEFECTUS IUDAEAE

FECIT DEDICAVIT.

Jacopo aplaude a sorrir. A Pedra de Pilatos. Um aplauso, caro senhor. Só comprova a existência de Tibério e Pilatos, que nunca esteve em dúvida, e confirma que o posto de Pôncio Pilatos era de prefeito, ou seja, governador e não procurador, argumentou Jacopo. Tens mais? É um trabalho em evolução. Não esqueças que estamos a falar de milénios de história em cima de história em curso. Mas nunca se sabe quando poderão aparecer novos elementos e tu, melhor que ninguém, sabes como é um trabalho moroso. Jacopo levantou os braços e abriu as mãos. Voltem sofistas. Estão perdoados.

Uma chuva miudinha acolheu-os assim que puseram o pé no exterior do terminal, limpando-lhes o rosto e agarrando-se à roupa. Que raio de tempo, protestou Jacopo. A Sûreté enviara um carro para os levar ao local onde Zafer fora encontrado por um drogado que procurava um local privado para subir às alturas. Em vez disso encontrou um velho estendido no chão, inerte, de barriga para baixo, sem vida. O armazém ficava a norte da cidade, longe do bulício turista, das luzes que lhe davam o epíteto. Um conjunto de projectores, alimentados por um gerador que fazia um ruído monumental, iluminava o exterior e interior do armazém. O cadáver já tinha sido recolhido durante a tarde. A perícia recolhera todos os elementos que pudessem revelar mais sobre o criminoso, porque o resto fora bastante claro. Zafer fora atraído ao local de livre e espontânea vontade, levara uma tareia e, por fim, uma injecção de prussiato acabara com o seu sofrimento. Algumas pessoas, vestidas à civil, vagueavam pelo local em algum afazer descontextualizado para quem estava de fora. Outras apenas conversavam sobre o jogo da selecção gaulesa, antevendo o final do longo dia de trabalho.

Rafael Santini?, chamou um homem de gabardina creme e cigarrilha na boca. Rafael foi retirado do mundo de probabilidades e especulações onde estava e levantou-se. O próprio. O senhor é o inspector Gavache? Efectivamente. Estendeu a mão a selar o conhecimento entre dois desconhecidos». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

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