quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Alberto S. Santos. O Segredo de Compostela. «Prisciliano, na inocência da infância e do mundo perfeito da villa, procurou compreender os ensinamentos do pedagogo, enquanto o ouvia discorrer sobre a forma como estava organizado o império»

 

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«(…) Esta foi a primeira lição que Prisciliano aprendeu quando o pai trouxe para a Villa Aseconia um pedagogo para providenciar a sua instrução. Até então, o próprio Lucídio se encarregara de o formar com o que julgava mais adequado, embora o petiz apreciasse bem mais as fantásticas histórias que Valéria lhe contava sobre a Galécia. Como vês, se gostas da tua cabeça em cima dos ombros e pretendes viver muito tempo, não queiras ser imperador, brincava o jovem mestre de Prisciliano, para ganhar a sua confiança. O rapaz ria-se e deitava-se a adivinhar que imperador seria o próximo a perder a cabeça. E outra coisa: quando um imperador morre às mãos de outro, o mal não chega só para quem perde a vida! Como assim, magister? É penalizada a família, os amigos e, se o poder for tomado por usurpação, os mais próximos colaboradores do antigo imperador. Eaté mesmo aqueles a quem as suas decisões, por alguma forma, beneficiaram podem perder a cabeça ou, pelo menos, o prestígio.

Prisciliano, na inocência da infância e do mundo perfeito da villa, procurou compreender os ensinamentos do pedagogo, enquanto o ouvia discorrer sobre a forma como estava organizado o império, apontando para um desenho feito num papiro. O Império Romano divide-se em quatro prefeituras, governadas pelos prefeitos do pretório: o Oriente, o Ilírico, a Itália e as Gálias, que é a nossa. Roma e Constantinopla são um caso à parte, cada uma com os seus exclusivos prefeitos. Estas prefeituras dividem-se, por sua vez, em dioceses. A das Gálias é composta pela Britânia, pela Gália e pela Hispânia, governadas por um vigário do prefeito. Por sua vez, cada diocese é dividida em províncias, cada uma com o seu governador. Diz lá então quais são as províncias da Hispânia, Prisciliano? Mas a cabeça do petiz viajava por outras paragens. O pai já lhe havia explicado a geografia e a divisão do império. Por isso, o seu pensamento pousara na procissão mágica em que participara, pela primeira vez, no dia anterior. O progenitor comandou, à frente, de mão dada com Prisciliano. Atrás de ambos, uma grossa coluna de colonos e escravos. Todos percorriam, a pé e completamente descalços, os limites dos campos de cultivo, com archotes na mão, proferindo os ritos propiciatórios da fecundidade da terra. O petiz apertava a mão do pai, impressionado com a experiência. Seguia encantado com a exuberância da procissão, pois sabia, isso era certo desde incontáveis gerações, que aqueles ritos afastariam o granizo, as geadas e as tempestades. Daquela forma, o pequeno Danígico experimentava a emoção de se ver intimamente ligado à sua linhagem. Imaginava-se um pequeno aprendiz de feiticeiro, dos que sabiam dominar os elementos nocivos à vida e à fertilidade das terras da família.

Prisciliano!, gritou o pedagogo, com ar sério e reprovador. Onde está a tua cabeça?! Em cima dos ombros, magister! Onde haveria de estar?! Não sou nenhum imperador… O professor desmanchou-se num riso incontrolável. O pequeno surpreendeu-se com a repentina mudança de humores e perguntou: de que te ris, Pacato? Ó Prisco, eu perguntava-te se sabias quais são as províncias da Hispânia… Prisciliano percebeu então que a cabeça, mesmo em cima dos ombros, também podia viajar através da imaginação, por montes e vales, espaços próximos e longínquos, mundos mágicos e reais, sem que o corpo, ou quem lhe estiver à frente, disso se apercebesse. E, a qualquer momento, poderiam voltar a reunir-se, como o faziam agora, respondendo com um aberto sorriso: Tarraconense, Cartaginense, Bética, Lusitânia e a nossa querida província: a Galécia! Muito bem! E em quantos conventos se divide a Galécia? Essa é muito fácil: o asturicence, o lucense, onde residimos, e o bracarense, onde se encontra Bracara Augusta, a capital do convento e de toda a Galécia.

Naquela noite, o jovem discípulo dormiu mal. As lições do pedagogo e as recentes vivências nos pagi da villa transportaram-no para novas aventuras oníricas, sonhando com intermináveis viagens por cidades, vici, castela e villae do império, e com um imperador que usurpou o poder, mandou cortar cabeças e perdeu a sua depois de causar tanta desgraça ao mundo presente e futuro». In Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.

Cortesia de PEditora/JDACT

JDACT, A Escrita, Alberto S. Santos, Galiza,