«(…) Esta foi a primeira lição que Prisciliano aprendeu quando o pai trouxe para a Villa Aseconia um pedagogo para providenciar a sua instrução. Até então, o próprio Lucídio se encarregara de o formar com o que julgava mais adequado, embora o petiz apreciasse bem mais as fantásticas histórias que Valéria lhe contava sobre a Galécia. Como vês, se gostas da tua cabeça em cima dos ombros e pretendes viver muito tempo, não queiras ser imperador, brincava o jovem mestre de Prisciliano, para ganhar a sua confiança. O rapaz ria-se e deitava-se a adivinhar que imperador seria o próximo a perder a cabeça. E outra coisa: quando um imperador morre às mãos de outro, o mal não chega só para quem perde a vida! Como assim, magister? É penalizada a família, os amigos e, se o poder for tomado por usurpação, os mais próximos colaboradores do antigo imperador. Eaté mesmo aqueles a quem as suas decisões, por alguma forma, beneficiaram podem perder a cabeça ou, pelo menos, o prestígio.
Prisciliano, na inocência da
infância e do mundo perfeito da villa,
procurou compreender os ensinamentos do pedagogo, enquanto o ouvia discorrer
sobre a forma como estava organizado o império, apontando para um desenho feito
num papiro. O Império Romano divide-se em quatro prefeituras, governadas pelos
prefeitos do pretório: o Oriente, o Ilírico, a Itália e as Gálias, que é a
nossa. Roma e Constantinopla são um caso à parte, cada uma com os seus
exclusivos prefeitos. Estas prefeituras dividem-se, por sua vez, em dioceses. A
das Gálias é composta pela Britânia, pela Gália e pela Hispânia, governadas por
um vigário do prefeito. Por sua vez, cada diocese é dividida em províncias,
cada uma com o seu governador. Diz lá então quais são as províncias da
Hispânia, Prisciliano? Mas a cabeça do petiz viajava por outras paragens. O pai
já lhe havia explicado a geografia e a divisão do império. Por isso, o seu pensamento
pousara na procissão mágica em que participara, pela primeira vez, no dia
anterior. O progenitor comandou, à frente, de mão dada com Prisciliano. Atrás
de ambos, uma grossa coluna de colonos e escravos. Todos percorriam, a pé e completamente
descalços, os limites dos campos de cultivo, com archotes na mão, proferindo os
ritos propiciatórios da fecundidade da terra. O petiz apertava a mão do pai,
impressionado com a experiência. Seguia encantado com a exuberância da
procissão, pois sabia, isso era certo desde incontáveis gerações, que aqueles
ritos afastariam o granizo, as geadas e as tempestades. Daquela forma, o
pequeno Danígico experimentava a emoção de se ver intimamente ligado à sua
linhagem. Imaginava-se um pequeno aprendiz de feiticeiro, dos que sabiam dominar
os elementos nocivos à vida e à fertilidade das terras da família.
Prisciliano!, gritou o pedagogo,
com ar sério e reprovador. Onde está a tua cabeça?! Em cima dos ombros, magister! Onde haveria de estar?! Não
sou nenhum imperador… O professor desmanchou-se num riso incontrolável. O
pequeno surpreendeu-se com a repentina mudança de humores e perguntou: de que
te ris, Pacato? Ó Prisco, eu perguntava-te se sabias quais são as províncias da
Hispânia… Prisciliano percebeu então que a cabeça, mesmo em cima dos ombros,
também podia viajar através da imaginação, por montes e vales, espaços próximos
e longínquos, mundos mágicos e reais, sem que o corpo, ou quem lhe estiver à
frente, disso se apercebesse. E, a qualquer momento, poderiam voltar a
reunir-se, como o faziam agora, respondendo com um aberto sorriso: Tarraconense,
Cartaginense, Bética, Lusitânia e a nossa querida província: a Galécia! Muito
bem! E em quantos conventos se divide a Galécia? Essa é muito fácil: o
asturicence, o lucense, onde residimos, e o bracarense, onde se encontra
Bracara Augusta, a capital do convento e de toda a Galécia.
Naquela noite, o jovem discípulo
dormiu mal. As lições do pedagogo e as recentes vivências nos pagi da villa transportaram-no para novas
aventuras oníricas, sonhando com intermináveis viagens por cidades, vici, castela e villae
do império, e com um imperador que usurpou o poder, mandou cortar cabeças e
perdeu a sua depois de causar tanta desgraça ao mundo presente e futuro». In
Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN
978-972-068-096-9.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, A Escrita, Alberto S. Santos, Galiza,