Lisboa, 22 de Junho de 1995
Mary
«(…) Estava perplexo. Mary era
uma mulher experiente e vivaça, mas nunca esperei um currículo tão vasto. Chamou-te
cobarde? A pergunta de Michael atingiu-me como um tiro no peito. Mary tinha
dito aquilo na intimidade, não era possível ele saber. A não ser que..., fosse um
hábito de Mary. Consciente de ter acertado em cheio, o meu amigo riu-se: sempre
a mesma Mary. Faz isso com todos. Insulta-nos, provoca-nos, e depois trepa por nós
a cima. Diz-me, Jack, a Mary pediu que a montasses? Corei. Michael deu uma
gargalhada e depois gritou, no meio do Rossio: bem-vindo ao clube dos namorados
da Mary! Fingiu ter um copo na mão, ergueu o braço e executou um brinde à minha
saúde, com pompa e circunstância. Era um patife teatral, o meu amigo! Desatou a
rir e o seu riso contagiou-me, e pouco depois já eu ria às gargalhadas. As
pessoas que passavam por nós também riam, divertidas. A custo, recuperámos a
seriedade, e Michael avisou: o problema é esse, Jack. Muitos homens na cama,
muitos segredos que deixam de o ser. Nestes tempos, é preciso ter cuidado. Os
alemães têm amigos por todo o lado.
O lembrete de Michael soou-me
exagerado. Desconhecedor do furtivo mundo da espionagem, tinha a atrevida
ignorância de duvidar. Ela pareceu-me mais preocupada com o coronel... Diz que
ele anda a falar com os comunistas, contrapus. Com ela é que ele não fala muito,
resmungou Michael. O meu amigo começou a andar na direcção da Suíça e segui-o.
A pastelaria, onde a afluência de refugiados obrigara a abrir uma esplanada
para a rua, fora baptizada pelos portugueses de Bompernasse, pois podiam
observar-se por lá muitas e belas pernas de mulheres estrangeiras. Francesas,
belgas, holandesas, judias da Alemanha ou da Polónia, calçavam soquettes, saíam
à rua sem meias, luvas ou chapéus, e penteavam o cabelo curto, à refugiada.
Aliviadas por terem escapado à guerra, aos black outs, às bombas ou às
perseguições da Gestapo, viviam Lisboa como um oásis, um nirvana de paz e
felicidade, e mostravam as pernas ao sol, lendo revistas e fumando cigarros,
numa animação estranha aos costumes lusitanos.
À frente da Suíça, um agitado
grupo de portugueses discutia a recente ocupação de Timor pelos japoneses.
Deviam ser funcionários públicos, saídos do emprego há pouco. Alguns tinham na
lapela cruzes de Lorena, emblema da França Livre, outros emblemas da RAF
inglesa, que usavam com orgulho apesar das multas da PSP. A 20 metros do grupo,
dois circunspectos homens de casaco cinzento, provavelmente da PVDE, vigiavam o
ajuntamento para evitar o descambar das polémicas. Cá estão os nossos amigos,
resmungou Michael. Diversas vezes me confessara a embirração que nutria pelos
agentes da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, a PVDE, que considerava
gente de segunda categoria. Mal formados, quase todos originários da PSP, não
falavam línguas, e Michael descrevia-os como paus-mandados, capazes de
incomodar, perseguir e torturar, sem saberem distinguir um francês dum polaco.
Porém, embora reconhecesse que existiam influências germânicas e do fascismo
italiano na PVDE, Michael considerava que a Gestapo não dominava a polícia de Salazar.
Explicara-me que o capitão Agostinho Lourenço, o chefe da PVDE, não era
pro-nazi mas sim um neutro, que cumpria estritamente as ordens de Salazar. Para
o meu amigo, havia na PVDE homens mais perigosos do que o chefe, como o tenente
Marrano, que Michael considerava um filho da pu…, formado na Alemanha pela
Gestapo, um sinistro esbirro a quem dava gozo perseguir os judeus e os
comunistas.
Sentámo-nos ao balcão da pastelaria.
Michael puxou de um maço de cigarros, ofereceu-me um e acendeu outro. Depois
perguntou: a Mary quer que tu a ajudes? Sim. E tu queres ajudá-la, ou só queres
continuar a montá-la? Sorri: as duas coisas. Ele riu-se. Acenou ao empregado
atrás do balcão e pediu duas aguardentes. O homem veio, pousou dois copos,
encheu-os e retirou-se. O problema não é a ajuda que vais dar, disse ele. O
problema é ajudá-la a ela, à mulher do James. Permaneci calado. Michael
prosseguiu, revelando-me uma novidade: ontem chegou um tipo novo a Lisboa.
Ralph Jones. Para pôr ordem na casa. Fez uma pausa, depois de dar um trago na
aguardente, e baixou o tom de voz, como que a conferir gravidade ao que ia
dizer. O coronel Bowles é perigoso. Olhei para ele: por causa dos comunistas? Michael
franziu as sobrancelhas, dando-me a entender que não era local para falar em
tal tema. Mudou de assunto e perguntou: queres ver a minha nova faca? Tirou do
bolso do casaco um coldre, e mostrou-me a faca. A lâmina era afiada, brilhante,
límpida como um espelho onde os nossos copos se reflectiam. Segurou-a pelo cabo
de madeira trabalhada e afirmou orgulhoso: é uma Randall, igual às que o
exército americano usa. Mandei-a vir de lá. Gosto de americanas...» In
Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN
978-972-462-174-6.
Cortesia de CdasLetras/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Guerra Mundial, Literatura, Conhecimento,