domingo, 28 de fevereiro de 2021

Enquanto Salazar Dormia. Domingos Amaral. «Sentámo-nos ao balcão da pastelaria. Michael puxou de um maço de cigarros, ofereceu-me um e acendeu outro. Depois perguntou: a Mary quer que tu a ajudes? Sim»

jdact

Lisboa, 22 de Junho de 1995

Mary

«(…) Estava perplexo. Mary era uma mulher experiente e vivaça, mas nunca esperei um currículo tão vasto. Chamou-te cobarde? A pergunta de Michael atingiu-me como um tiro no peito. Mary tinha dito aquilo na intimidade, não era possível ele saber. A não ser que..., fosse um hábito de Mary. Consciente de ter acertado em cheio, o meu amigo riu-se: sempre a mesma Mary. Faz isso com todos. Insulta-nos, provoca-nos, e depois trepa por nós a cima. Diz-me, Jack, a Mary pediu que a montasses? Corei. Michael deu uma gargalhada e depois gritou, no meio do Rossio: bem-vindo ao clube dos namorados da Mary! Fingiu ter um copo na mão, ergueu o braço e executou um brinde à minha saúde, com pompa e circunstância. Era um patife teatral, o meu amigo! Desatou a rir e o seu riso contagiou-me, e pouco depois já eu ria às gargalhadas. As pessoas que passavam por nós também riam, divertidas. A custo, recuperámos a seriedade, e Michael avisou: o problema é esse, Jack. Muitos homens na cama, muitos segredos que deixam de o ser. Nestes tempos, é preciso ter cuidado. Os alemães têm amigos por todo o lado.

O lembrete de Michael soou-me exagerado. Desconhecedor do furtivo mundo da espionagem, tinha a atrevida ignorância de duvidar. Ela pareceu-me mais preocupada com o coronel... Diz que ele anda a falar com os comunistas, contrapus. Com ela é que ele não fala muito, resmungou Michael. O meu amigo começou a andar na direcção da Suíça e segui-o. A pastelaria, onde a afluência de refugiados obrigara a abrir uma esplanada para a rua, fora baptizada pelos portugueses de Bompernasse, pois podiam observar-se por lá muitas e belas pernas de mulheres estrangeiras. Francesas, belgas, holandesas, judias da Alemanha ou da Polónia, calçavam soquettes, saíam à rua sem meias, luvas ou chapéus, e penteavam o cabelo curto, à refugiada. Aliviadas por terem escapado à guerra, aos black outs, às bombas ou às perseguições da Gestapo, viviam Lisboa como um oásis, um nirvana de paz e felicidade, e mostravam as pernas ao sol, lendo revistas e fumando cigarros, numa animação estranha aos costumes lusitanos.

À frente da Suíça, um agitado grupo de portugueses discutia a recente ocupação de Timor pelos japoneses. Deviam ser funcionários públicos, saídos do emprego há pouco. Alguns tinham na lapela cruzes de Lorena, emblema da França Livre, outros emblemas da RAF inglesa, que usavam com orgulho apesar das multas da PSP. A 20 metros do grupo, dois circunspectos homens de casaco cinzento, provavelmente da PVDE, vigiavam o ajuntamento para evitar o descambar das polémicas. Cá estão os nossos amigos, resmungou Michael. Diversas vezes me confessara a embirração que nutria pelos agentes da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, a PVDE, que considerava gente de segunda categoria. Mal formados, quase todos originários da PSP, não falavam línguas, e Michael descrevia-os como paus-mandados, capazes de incomodar, perseguir e torturar, sem saberem distinguir um francês dum polaco. Porém, embora reconhecesse que existiam influências germânicas e do fascismo italiano na PVDE, Michael considerava que a Gestapo não dominava a polícia de Salazar. Explicara-me que o capitão Agostinho Lourenço, o chefe da PVDE, não era pro-nazi mas sim um neutro, que cumpria estritamente as ordens de Salazar. Para o meu amigo, havia na PVDE homens mais perigosos do que o chefe, como o tenente Marrano, que Michael considerava um filho da pu…, formado na Alemanha pela Gestapo, um sinistro esbirro a quem dava gozo perseguir os judeus e os comunistas.

Sentámo-nos ao balcão da pastelaria. Michael puxou de um maço de cigarros, ofereceu-me um e acendeu outro. Depois perguntou: a Mary quer que tu a ajudes? Sim. E tu queres ajudá-la, ou só queres continuar a montá-la? Sorri: as duas coisas. Ele riu-se. Acenou ao empregado atrás do balcão e pediu duas aguardentes. O homem veio, pousou dois copos, encheu-os e retirou-se. O problema não é a ajuda que vais dar, disse ele. O problema é ajudá-la a ela, à mulher do James. Permaneci calado. Michael prosseguiu, revelando-me uma novidade: ontem chegou um tipo novo a Lisboa. Ralph Jones. Para pôr ordem na casa. Fez uma pausa, depois de dar um trago na aguardente, e baixou o tom de voz, como que a conferir gravidade ao que ia dizer. O coronel Bowles é perigoso. Olhei para ele: por causa dos comunistas? Michael franziu as sobrancelhas, dando-me a entender que não era local para falar em tal tema. Mudou de assunto e perguntou: queres ver a minha nova faca? Tirou do bolso do casaco um coldre, e mostrou-me a faca. A lâmina era afiada, brilhante, límpida como um espelho onde os nossos copos se reflectiam. Segurou-a pelo cabo de madeira trabalhada e afirmou orgulhoso: é uma Randall, igual às que o exército americano usa. Mandei-a vir de lá. Gosto de americanas...» In Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN 978-972-462-174-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Guerra Mundial, Literatura, Conhecimento,