A Maldição. A Rainha Sem Amor
«(…) Olhai,
prestai atenção! No pátio, Eduardo II dava ordens, apoiando-se a um jovem
trabalhador, em cujo pescoço passara o braço. Reinava em torno dele uma
familiaridade suspeita. Os leões da Inglaterra tinham descido de novo para o chão,
sem dúvida por ter se decidido que o lugar não era bom. Eu pensava, disse
Isabel, ter passado pelo pior, com o Cavaleiro de Gabaston. Aquele bearnês
insolente e gabarola governava tão bem meu esposo, que chegou a governar o
reino. Eduardo lhe havia dado todas as jóias do meu cofre de noiva.
Positivamente, é um hábito de família ver que as jóias das mulheres, de uma
forma ou de outra, acabam sendo usadas pelos homens! Tendo junto dela um
parente, um amigo, Isabel deixava, enfim, exalar seus desgostos e humilhações.
Os costumes do rei Eduardo II eram conhecidos em toda a Europa. Os barões e eu,
no ano passado, conseguimos derrotar Gabaston; foi decapitado e seu corpo está
hoje bem putrefacto sob a terra, em Oxford, disse a rainha, com satisfação. Tanta
crueldade, expressa por rosto tão belo, não pareceu surpreender Roberto
d'Artois. Devemos dizer que tais processos eram, naquele tempo, moeda corrente.
Os reinos ficavam, muitas vezes, entregues a adolescentes, que se deixavam
deslumbrar com o seu poder total, como por um brinquedo. Mal saídos da idade em
que é divertimento arrancar as asas das moscas, conseguiam divertir-se
arrancando cabeças de homens. E muitos jovens para temer ou imaginar a morte, não
hesitavam em distribuí-la em torno de si.
Isabel subira ao
trono aos dezasseis anos; em seis anos progredira muito. Pois bem, meu primo,
chego a sentir falta do Cavaleiro de Gabaston, continuou ela. Porque desde então,
como para se vingar de mim, Eduardo chama ao palácio tudo quanto há de mais baixo
e de mais infame entre os homens do povo. É visto a percorrer as espeluncas do
porto de Londres, sentando-se entre os vagabundos, rivalizando na luta com os
carregadores e na corrida com os palafreneiros. Que belos torneios ele oferece,
dessa maneira! Durante esse tempo, quem quiser governa o reino, contanto que
organize seus prazeres, e deles partilhe. Neste momento, são os barões Despenser:
o pai não é melhor que o filho, que serve de mulher a meu marido. Quanto a mim,
Eduardo não me procura mais, e se por acaso acontece-lhe procurar-me, tenho
tamanha vergonha que me conservo fria. Ela baixara a fronte. Uma rainha é o
mais infeliz dos vassalos do reino, se seu marido não a ama. É bastante que ela
tenha assegurado a descendência: sua vida, dali por diante, não conta mais.
Qual seria a mulher de
barão, a mulher de burguês ou de vilão, que suportaria o que eu tenho de
tolerar, porque sou rainha? A última das lavadeiras do reino tem mais direitos
do que eu: pode vir pedir-me apoio...
Roberto d'Artois sabia, quem não
o sabia?, que o casamento de Isabel não era feliz. Mas não imaginara que o
drama fosse tão profundo, que ela se sentisse atingida a tal ponto. Minha
prima, minha bela prima, quero servir-vos de apoio, disse ele, calorosamente. Ela
levantou tristemente os ombros, como para dizer: que podeis fazer por mim?
Estavam face a face. Ele estendeu as mãos, tomou-a pelos cotovelos, tão
docemente quanto lhe foi possível, e disse, murmurando... Isabel... Ela pousou
as mãos sobre os braços do gigante, respondendo: Roberto... Olharam-se, e
apoderou-se deles uma perturbação que não tinham previsto. D'Artois teve a impressão
de que Isabel lançava um apelo secreto. Sentiu-se, de repente, e de forma
estranha, emocionado, oprimido, constrangido por uma força que temia utilizar
desajeitadamente. Vistos de perto, os olhos azuis de Isabel, sob o arco das sobrancelhas
louras, eram ainda mais belos, as faces mais aveludadas, mais saborosas. Ela
tinha a boca entreaberta, e o bordo de seus dentes brancos aparecia entre os lábios.
De repente d'Artois sentiu o brusco desejo de devotar seu tempo, sua vida, seu
corpo e sua alma àquela boca, àqueles olhos, àquela rainha frágil que, naquele
instante, voltava a ser a adolescente que era. Ele a desejava, simplesmente,
com um desejo imediato e robusto que não sabia como expressar. Seus gostos não
o levavam, habitualmente, para junto de mulheres de qualidade, e as graças da galanteria
não eram seu natural». In Maurice
Druon, Os Reis Malditos 1, O Rei de Ferro, 1965, Gótica, colecção Cavalo de
Tróia, 2006, ISBN 978-972-792-159-1.
Cortesia Gótica/JDACT
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