Paris, 4 de Junho de 1940
«(…) Durante as horas seguintes, Carol vagueou por Paris numa
apatia entristecida. Nem a Hirondelle
revelou a habitual magia e, pela
primeira vez, não se sentiu a voar. Aliás, a maior parte do tempo levara a
bicicleta pela mão ou sentara-se num banco qualquer, nas Tulherias, nos Campos
Elísios, mais tarde em frente à Catedral de Nôtre-Dame, a matutar, deprimida. Não
estava apaixonada por Jean-Luc, ele não lhe tinha partido o coração, a questão
não era essa! Numa primeira vaga de raiva, concluiu que aquela separação
inesperada agravava a sensação dolorosa por ser um manifesto da mudança radical
de Paris. Jean-Luc era um símbolo francês, um exemplo de falta de resiliência,
de vertigem medrosa e de uma mesquinha ausência de solidariedade. Tal como no
romance de Victor Hugo, Os Miseráveis,
no presente também existiam os fugitivos e os lutadores que construíam
barricadas nas ruas! Jean-Luc pertencia ao grupo dos primeiros.
Infelizmente,
não via parisienses da segunda estirpe e era nesse momento que lhe nascia na
alma uma nova vaga, mais racional e compreensiva: os citoyens estavam em
pânico e, tendo familiares nas províncias, era natural colocarem-se a uma
distância segura dos panzers. Jean-Luc fora lúcido, se não partisse hoje de comboio,
poderia não o conseguir fazer depois. Após essa curta acalmia, uma terceira
onda de emoções levantava-se, crispada e barulhenta, denegrindo o amigo por a
haver ignorado, por não mostrar sequer a decência e o cavalheirismo de a
informar. Ela não teria revertido a decisão dele, nem esperado uma sugestão
para o acompanhar. Mas fugir como um tolo? Caramba, não se viam ainda
botifarras nazis nos boulevards e Jean-Luc
nem sequer era judeu, comunista, ou soldado, não estava no topo das
preocupações alemãs!
De
repente, a minha prima lembrou-se da opinião de Polly sobre os franceses e deu
por si a concordar com a americana. Andavam aterrados e o desaparecimento intempestivo
de Jean-Luc provava-o. Não que o namorado apresentasse falta de apetite sexual,
essa parte não validava a teoria de Polly, mas…
Um
pensamento intrometeu-se e o coração magoado de Carol acelerou a batida. E se
estivesse grávida? Jean-Luc fora-se embora sem qualquer preocupação com essa
minúscula probabilidade! Esquecera-a sem lhe dar sequer um romântico beijo de
despedida, na gare, como no final dos filmes americanos. Porém, a minha prima
dera-se e, mesmo com as precauções tomadas, podia sempre existir um percalço!
Na universidade, conhecia pelo menos duas alunas que haviam engravidado sem
querer. Aquela dor na barriga, que já sentira várias vezes, seria um pequeno
embrião a germinar? Enxotou a tolice. Não estava grávida, o sentimento de
abandono é que a fazia pensar assim. A única conclusão certa era a de que o
namorado não prestava, ponto final. Decidida, começou a desconstruí-lo. Que
parvo, sempre com a boca torta de nojo, ao vê-la comer mexilhões! O odor dele
também lhe repugnava, mas o pior era mesmo o cabelo, oleoso, lambido e
raramente lavado. Isso e a incapacidade para dar uns passos de dança. Não
tinham mesmo nada a ver um com o outro, aquela fora uma mera ligação entre dois
solitários, fraca e ténue!
Até
na cama era maçador, um aspirante a médico sem qualquer curiosidade pela anatomia
feminina. Nem por uma vez a beijara nos mamilos ou lá em baixo e possuía-a
sempre deitado em cima dela, que abria as pernas e pronto, um calorzinho no
ventre e já está! Agora que pensava nisso, nunca ficara por cima, a tal posição
de que Polly tanto gostava. Aliás, o lendário prazer explosivo de que as outras
mulheres falavam, que se devia procurar como se fosse o Santo Graal dos
romances da Távola Redonda, nunca Carol o encontrara! Jean-Luc era um banal
iniciador, sem prática ou jeito, que nem sequer ascendia ao nobre estatuto de
ter sido o seu primeiro homem. A dado momento, tanta era a sua irritação que até
olhou com brusquidão para a Hirondelle
quando esta tombou com o vento, talvez
por estar mal encostada ao banco. Levantou-se, furiosa, prestes a brindar com
palavrões a bicicleta, como se esta fosse uma extensão de Jean-Luc. Porém, um
raio de lucidez atravessou-a: não seriam justos tais desatinos, a Hirondelle nunca lhe falhara, nem um mísero furo tivera em dois anos,
revelara-se um monumento de resiliência. Enquanto Paris a abandonava, a fiel
bicicleta continuava com ela! Então, levantou-a do chão e acarinhou-a, passando
a palma da mão direita no selim. Se algo parecido com amor existia no seu coração,
era por aquela bicicleta!» In Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos
Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.
Cortesia CdasLetras/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Literatura, Paris,