«(…) Maravilhosa música que ninguém ouviu durante meses e anos, sem descanso, nenhuma pausa, de dia e de noite, na hora esplêndida e assustadora do nascer do Sol e nessa outra ocasião de maravilha que é adeus luz até amanhã, este roer constante, contínuo, como um infinito realejo de uma nota só, moendo, triturando fibra a fibra, e toda a gente distraída a entrar e a sair, lá ocupada com as suas coisas, sem saber que dali sairá, repetimos, numa hora assinalada, de pistolas em punho, o Anobium, enquadrando o inimigo, o alvo, e acertando ou acentrando, que é precisamente acertar no centro, ou fica a ser desde agora, porque alguém tinha de ser o primeiro. Maravilhosa música afinal composta e tocada por gerações de coleópteros, para seu gozo e nosso benefício, como foi sina da família Bach, tanto antes como depois de João Sebastião. Música não ouvida, e se ouvisse que faria, por aquele que sentado na cadeira com ela cai e forma na garganta, de susto ou surpresa, este som articulado que talvez não venha a ser grito, uivo, muito menos palavra. Música que vai calar-se, que se calou agora mesmo: Buck Jones vê o inimigo caindo inexoravelmente para o chão, sob a grande e ofuscante luz do Sol texano, enfia nos coldres os revólveres e tira o grande chapéu de abas largas para enxugar a testa e porque Mary se aproxima a correr, de vestido branco, agora que o perigo já passou.
Haveria, porém, algum exagero em
afirmar que todo o destino dos homens se encontra inscrito no aparelho bucal
roedor dos coleópteros. Se assim fosse, teríamos ido viver todos para casas de
vidro e ferro, portanto ao abrigo do Anobium, mas não ao abrigo de tudo,
porque, afinal, por alguma razão existe, e para outra também, esse misterioso
mal a que damos, nós cancerosos em potência, o nome de cancro do vidro, e essa
tão vulgar ferrugem, que, vá alguém desvendar estes outros mistérios, não ataca
o pau-ferro mas desfaz literalmente o que só ferro for. Nós, homens, somos
frágeis, mas, em verdade, temos de ajudar a nossa própria morte. É talvez uma questão
de honra nossa: não ficarmos assim inermes, entregues, darmos de nós qualquer
coisa, ou então para que serviria estar no mundo? O cutelo da guilhotina corta,
mas quem dá o pescoço? O condenado. As balas das espingardas perfuram, mas quem
dá o peito? O fuzilado. A morte tem esta peculiar beleza de ser tão clara como
uma demonstração matemática, tão simples como unir com uma linha dois pontos,
desde que ela não exceda o comprimento da régua.
Tom Mix dispara os seus dois revólveres,
mas ainda assim é necessário que a pólvora comprimida nos cartuchos tenha poder
suficiente e seja em quantidade suficiente para que o chumbo galgue a distância
na sua trajectória ligeiramente curva (não tem que fazer aqui a régua), e,
tendo cumprido as exigências da balística, fure primeiro à boa altura o colete
de pano, depois a camisa talvez de flanela, a seguir a camisola de lã que de
Inverno aquece e de Verão absorve o suor, e finalmente a pele, macia e elástica,
que primeiramente se recolhe supondo, se a pele supõe, se não supura apenas,
que a força dos projécteis ali se quebrará, e cairão portanto as balas por
terra, na poeira do caminho, a seu salvo o criminoso até ao próximo episódio. Não
foi porém assim. Buck Jones já tem Mary nos braços e a palavra Fim nasce-lhe da
boca e vai encher o ecrã. Seria a altura de se levantarem os espectadores,
devagar, seguirem pela coxia para a luz crua que vem da porta, porque foram à
matinée, fazendo força para regressar a esta realidade sem aventura, um pouco
tristes, um pouco corajosos, e tão mal apontados à vida que na carreira de tiro
espera, que há mesmo quem se deixe ficar sentado para a segunda sessão: era uma
vez.
Também agora se sentou este homem
velho que primeiro saiu de uma sala e atravessou outra, depois seguiu por um
corredor que poderia ser a coxia do cinema, mas não é, é uma dependência da
casa, não diremos sua, mas apenas a casa em que vive, ou está vivendo, toda ela
portanto não sua, mas sua dependência. A cadeira ainda não caiu. Condenada, é
como um homem extenuado por enquanto aquém do grau supremo da exaustão:
consegue aguentar o seu próprio peso. Vendo-a de longe, não parece que o
Anobium a transformou, ele cow-boy e mineiro, ele no Arizona e em Jales, numa
rede labiríntica de galerias, de se perder nela o siso. Vê-a de longe o velho
que se aproxima e cada vez mais de perto a vê, se é que a vê, que de tantos
milhares de vezes que ali se sentou a não vê já, e esse é que é o seu erro,
sempre o foi, não reparar nas cadeiras em que se senta por supor que todas são
de poder o que só ele pode. S. Jorge, santo, veria ali o dragão, mas este velho
é um falso devoto que se mancumunou, de gorra, com os cardeais patriarcas, e
todos juntos, ele e eles, in hoc signo vinces. Não vê a cadeira, ainda agora
vem a sorrir de cândido contentamento, e chega-se a ela, sem reparar, enquanto esforçadamente
o Anobium desfaz na última galeria as derradeiras fibras e aperta sobre as
ancas o cinto dos coldres. O velho pensa que irá descansar digamos meia hora,
que talvez dormite mesmo um pouco nesta boa temperatura do princípio de Outono,
que certamente não terá paciência de ler os papéis que traz na mão. Não nos
impressionemos. Não se trata de um filme de terror; com quedas assim se fizeram
e farão excelentes cenas cómicas, gags hilariantes, como os fez o Chaplin,
todos temos na memória, ou o Pat e Patachon, ganha um doce quem se lembrar». In
José Saramago, Objecto Quase, 1978, Porto Editora, 2015, ISBN
978-972-004-655-0.
Cortesia de PortoE/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Política, Cultura, Nobel, MLCT,