Os Cuidados de Abraão
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No início do II Milénio antes de Cristo, mais precisamente por volta do ano de
1700, na Caldeia, terra da baixa Mesopotâmia, dominava a dinastia dos Amorreus.
Nesses tempos remotos, na cidade de Ur, vivia Tare, descendente em linha directa
de Sem, filho de Noé. Tare cruzara o limiar dos setenta anos quando gerou
Abraão, o seu primogénito, seguindo-se-lhe Nahor e Harran que morreu muito
novo, deixando o filho Lot, ainda criança, a cargo do avô. As tarefas
obrigatórias da construção e manutenção da imensa rede de canais que irrigavam
as terras da Mesopotâmia com as águas dos rios gêmeos Tigre e Eufrates e os
impostos pesadíssimos que tanto o rei como os sacerdotes do Templo de Ur
lançavam sobre o gado tornavam a vida impossível aos pastores e agricultores,
obrigando-os a endividar-se a tal ponto que, não podendo pagar aos credores,
quase sempre os próprios sacerdotes que cobravam juros de vinte a trinta por
cento, acabavam por ser vendidos como escravos juntamente com toda a sua
família. Tare viu-se forçado a emigrar para Harran, a principal cidade da alta
Mesopotâmia, levando consigo o neto, o filho Abraão e a mulher deste, a
formosíssima Sarai. Aí se fixaram e viveram durante muito tempo com alguma
prosperidade, apesar de estarem sob o domínio dos Urritas, um povo indo-europeu
que a pouco e pouco se viera fixar na Mesopotâmia Superior, perseguindo os
naturais da terra e provocando um grande movimento de fuga e migração para
Ocidente. No entanto, aos setenta e cinco anos de idade, Abraão vivia muito
descontente em casa do pai, ansiando pela independência e pelo dia em que se
tornaria senhor da sua vida e da própria família. Esse sonho, porém,
parecia-lhe impossível de realizar, visto Tare ainda não ter passado dos cento
e quarenta e cinco anos, sendo portanto um homem na força da vida e nada
disposto a largar as rédeas do poder nem a permitir a ida do filho para longes
terras.
Abraão
não podia deixar de sentir uma certa inveja do irmão Nahor a quem o pai
obrigara a ficar em Ur, a fim de não perder a casa e cuidar da parte dos bens
deixados à sua guarda, pois a sorte poderia não lhes sorrir em Harran e, nesse
caso, teriam de regressar ao lar antigo. Assim, Nahor ganhara a sua liberdade e
Abraão trocaria sem hesitar o seu lugar com o dele, apesar das dificuldades que
teria de defrontar para sobreviver em Ur.
Sendo, todavia, um filho respeitador, não queria ferir os sentimentos do progenitor, mostrando-se ingrato e desobediente ao insistir no desejo de partir contra a vontade de Tare. De noite, o seu sono era intranquilo, povoado de pesadelos que o faziam despertar em sobressalto, alagado em suor e sem ânimo de viver. Se ao menos Sarai emprenhasse, talvez o pai os deixasse em paz e não o perseguisse com rogos que mais pareciam ordens para tomar uma segunda esposa: Sarai é estéril!, insistia Tare, todos os dias. Esse é muitas vezes o mal das mulheres demasiado belas. A admiração dos homens leva-as a não querer emprenhar, para não deformarem os corpos. Como ela não te dá filhos, a lei permite-te tomar uma nova esposa ou uma escrava concubina. Já é tempo de me dares netos e assegurares a tua geração. Nunca te devia ter dado Sarai por mulher, mas julguei que seria como a sua mãe, fértil e submissa. Abraão não respondia, desgostoso do modo cruel como Tare se referia a Sarai que também era sua filha, gerada numa escrava de grande beleza e, todas as noites possuía a mulher, rogando aos deuses da fecundidade para a abençoarem com uma desejada prenhez. Porém, apesar de amar a esposa e de continuar a admirar a sua beleza, parecia que o desejo por ela o havia abandonado e raramente lograva levar o acto até ao fim. Quando os seus corpos se uniam e Sarai sufocava um gemido de prazer, a voz do pai ressoava-lhe aos ouvidos e era como se um fantasma se viesse instalar entre eles no leito, o seu corpo amolecia subitamente e Abraão retirava-se da mulher, voltando-lhe as costas, envergonhado. Sarai suspirava de tristeza, mas nada dizia. Uma noite Abraão confiou-lhe a sua pena e desilusão: sonhei de novo com a nossa partida. Por vezes é tão real, parece mesmo que já fui embora! Rezo aos deuses para não me darem esses sonhos, porém mal adormeço ouço uma voz imperiosa a mandar-me seguir viagem. Mas nosso pai jamais me deixará partir. Desesperado, Abraão escondeu o rosto entre as mãos e chorou. Sarai, compadecida mas implacável, disse-lhe: também eu não sou feliz na casa de Tare, sujeita a servi-lo e a obedecer aos seus caprichos. De tanto dizer que sou estéril, parece ter-me lançado uma maldição! Só sei que, enquanto aqui viver, não serei capaz de conceber um filho da tua semente. Mas eu não posso desobedecer ao nosso pai! Isso, nunca! E se for ele a querer que partas?, perguntou Sarai quase num murmúrio. Mas como?, Abraão erguera o rosto ainda molhado de lágrimas e olhava a mulher com surpresa.
Essas
vozes que ouves nos sonhos são as dos Elohim a indicar-te o rumo da tua vida e
não deves fugir ao destino, nem desobedecer a uma ordem divina. Tens de
consultar os videntes da Casa do Segredo, diante do nosso pai, para ele ouvir
os oráculos que, certamente, te hão-de aconselhar a seguir o caminho indicado
pelas vozes. Abraão sorriu, com uma leve esperança: os deuses falaram
pela tua boca, Sarai, para me dares tão sábio conselho! Tare não se recusará
a acompanhar-me ao Zigurate! O
seu rosto ensombrou-se de novo e perguntou ansioso: e se os oráculos
não nos forem propícios? Levaremos
o carneiro mais gordo do nosso rebanho para os videntes o sacrificarem no altar
de Marduk e lerem nas suas entranhas o teu destino; e eu mesma irei ao Templo
entregar outras ricas ofertas aos sacerdotes para eles realizarem bem os ritos
e fazerem uma boa interpretação dos oráculos. Por momentos, aflorou ao espírito
de Abraão a suspeita de que Sarai se preparava para subornar os sacerdotes e os
videntes do Zigurate de Harran (como ele sabia que podia ser feito), de forma a
obter o melhor resultado para a sua empresa e a ideia de enganar
Tare quase o fez desistir do seu propósito. Porém, o rosto de Sarai tão próximo
do seu, iluminado pela luz oscilante da candeia suspensa por cima da enxerga,
tinha uma beleza diferente, como nunca antes lhe vira, com um brilho estranho
nos olhos tão negros e profundos que Abraão se sentiu atraído para eles como
para um abismo e esqueceu todos os escrúpulos e remorsos. Sarai reclinara-se
sobre ele, para lhe expor o seu plano e Abraão sentia contra o corpo o contacto quente dos
seios, redondos e duros como os frutos do Jardim das Delícias e recebia no
rosto o sopro da sua fala envolto no hálito perfumado e fresco das folhas de menta
que se acostumara a mordiscar». In Deana Barroqueiro, Contos Eróticos do
Antigo Testamento, 2003, Planeta Editora, 2018, ISBN 978-989-777-143-9.
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