«(…) E não antecipemos, embora saibamos que a cadeira se vai partir: mas não é ainda, primeiro há-de o homem sentar-se devagar, nós, os velhos, dão-nos a lei os trémulos joelhos, há-de pousar as mãos ou agarrar com força os braços ou abas da cadeira, para não deixar descair bruscamente as nádegas enrugadas e o fundilho das calças no assento que lhe tem suportado tudo, como é escusado especificar, que todos somos humanos e sabemos. Pelo lado da tripa, esclareça-se, porque este velho há muitas e também diversas razões, e antigas elas são, para duvidar da sua humanidade. No entanto, está sentado como um homem. Ainda não se recostou. O seu peso, mais um grama menos um grama, está igualmente distribuído no assento da cadeira. Se não se mexesse, poderia ficar assim a seu alvo até ao pôr do Sol, altura em que o Anobium costuma recobrar forças e roer com vigor novo. Mas vai mexer-se, mexeu-se, recostou-se no espaldar, pendeu mesmo um quase nada para o lado frágil da cadeira. E ela parte-se.
Parte-se a perna da cadeira,
rangeu primeiro, depois dilacerou-a a acção do peso desequilibrado, e num
repente a luz do dia entrou deslumbrante pela galeria de Buck Jones, iluminando
o alvo por causa da conhecida diferença entre as velocidades da luz e do som,
entre a lebre e a tartaruga, a detonação ouvir-se-á mais tarde, surda, abafada
como um corpo que cai. Demos tempo ao tempo. Não está mais ninguém na sala, ou
quarto, ou varanda, ou terraço, ou; enquanto o som da queda não for ouvido,
somos nós os senhores deste espectáculo, podemos até exercitar o sadismo de
que, como o médico e o louco, temos felizmente um pouco, de uma forma, digamos
já, passiva, só de quem vê e não conhece ou in lume rejeita obrigações
sequer só humanitárias de acudir. A este velho não.
Vai a cair para trás. Aí vai.
Aqui, mesmo em frente dele, lugar escolhido, podemos ver que tem o rosto
comprido, o nariz adunco e afiado como um gancho que fosse também navalha, e se
não se desse o caso de ter aberto a boca neste instante, teríamos o direito,
aquele direito que tem toda e qualquer testemunha ocular, que por isso diz eu
vi, de jurar que não há lábios nela. Mas abriu-a, abre-a de susto e surpresa,
de incompreensão, e assim é possível distinguir, embora com pouca precisão,
dois rebordos de carne ou larvas pálidas que só pela diferença de textura dérmica
se não confundem com a outra palidez circundante. A barbela estremece sobre a
laringe e mais cartilagens, e o corpo todo acompanha a cadeira para trás, e no
chão já rolou para o lado, não longe, porque todos devemos assistir, o pé da
cadeira partido. Espalhou uma poeira amarela aglomerada, verdade que não muita,
mas bastante para em tudo isto nos comprazermos na imaginação duma ampulheta
cuja areia se constituísse escatologicamente das dejecções do coleóptero: por
onde se vê a que ponto seria absurdo meter aqui Buck Jones e o seu cavalo
Malacara, isto supondo que Buck mudou de cavalo na última estalagem e monta
agora o cavalo de Fred. Deixemos porém este pó que não é sequer enxofre, e que
bem ajudaria o cenário se o fosse, ardendo com aquela chama azulada e soltando aquele
seu malcheiroso ácido sulfuroso, ó rima. Seria uma óptima maneira de o inferno
aparecer assim como tal, enquanto a cadeira de belzebu se parte e cai para trás
arrastando consigo satanás, asmodeu e legião.
O velho já não segura os braços
da cadeira, os joelhos subitamente não trémulos obedecem agora a outra lei, e
os pés que sempre calçaram botas para que se não soubesse que são bifurcados
(ninguém leu a tempo e com atenção, está lá tudo, a dama pé de cabra), os pés já
estão no ar. Assistiremos ao grande exercício ginástico, o mortal para trás,
muito mais espectacular este, embora sem público, do que os outros vistos em
estádios e jamores, do alto da tribuna, no tempo em que as cadeiras ainda eram
sólidas e o Anobium uma improvável hipótese de trabalho. E não está ninguém que
fixe este momento, o meu reino por uma polaroid, gritou Ricardo III, e ninguém
lhe acudiu porque pedia cedo de mais. O nada que temos em troca deste tudo de
mostrar o retrato dos filhos, o cartão de sócio e a vera imagem da queda. Ai
estes pés no ar, cada vez mais longe do chão, ai aquela cabeça cada vez mais
perto, ai Santa Comba, não santa dos aflitos, santa padroeira sim daquele que
sempre os afligiu. As filhas do Mondego a morte escura ainda por agora não
choram. Esta queda não é uma qualquer queda de Chaplin, não se pode repetir
outra vez, é única e por isso excelente, como quando juntos estiveram os feitos
de Adão e as graças de Eva. E por nela termos falado, Eva doméstica e serviçal,
mandante na proporção, benfeitora de desempregados se sóbrios, honestos e católicos,
buraco de martírio, poder medrado e merdado à sombra deste Adão que cai sem maçã
nem serpente, onde estás?» In José Saramago, Objecto Quase, 1978, Porto
Editora, 2015, ISBN 978-972-004-655-0.
Cortesia de PortoE/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Política, Cultura, Nobel, MLCT,