«(…) Muito menos nesta destrinça de questões botânicas que de sinónimos não cuida, mas cuida de verificar dois diferentes nomes que a gente diferente deu à mesma coisa. Pode-se apostar que o nome de pau-ferro foi dado ou pesado por quem teve de o transportar às costas. Aposta pela certa e ganha. Se de ébano fosse, teríamos provavelmente de acoimar de perfeita a cadeira que está caindo, e acoimar ou encoimar se diz porque então não cairia ela, ou viria a cair muito mais tarde, daqui por exemplo a um século, quando já não nos valesse a pena sua de cair. É possível que outra cadeira viesse a cair no lugar dela, para poder dar a mesma queda e o mesmo resultado, mas isso seria contar outra história, não a história do que foi porque está acontecendo, sim a do que talvez viesse a suceder. O certo é bem melhor, principalmente quando muito se esperou pelo duvidoso.
Porém, uma certa perfeição
haveremos de reconhecer nesta afinal única cadeira que continua a cair. Foi
construída não de propósito para o corpo que nela tem vindo a sentar-se desde há
muitos anos mas escolhida por causa do desenho, por acertar ou não contradizer
em excesso o resto dos móveis que estão perto ou mais longe, por não ser de
pinho, ou cerejeira, ou figueira, vistas as razões já ditas, e ser de madeira
costumadamente usada em móveis de qualidade e para durar, verbi gratia, mogno. É
esta uma hipótese que nos dispensa de ir mais longe na averiguação, aliás não
deliberada, da madeira que serviu para dela cortar, moldar, afeiçoar, grudar,
encaixar, apertar e deixar secar a cadeira que está caindo. Seja pois o mogno e
não se fale mais no assunto. A não ser para acrescentar quanto é agradável e
repousante, depois de bem sentados, e se a cadeira tem braços, e é toda ela
mogno, sentir sob as palmas das mãos aquela dura e misteriosa pele macia da
madeira polida, e, se curvo o braço, o jeito de ombro ou joelho ou osso ilíaco
que essa curva tem.
Desgraçadamente, o mogno, verbi
gratia, não resiste ao caruncho como resiste o antes mencionado ébano ou
pau-ferro. A prova está feita pela experiência dos povos e dos madeireiros, mas
qualquer de nós, se animado de espírito científico bastante, poderá fazer a sua
própria demonstração usando os dentes numa e noutra madeira e julgando a
diferença. Um canino normal, mesmo nada preparado para uma exibição de força
dental circense, imprimirá no mogno uma excelente e visível marca. Não o fará
no ébano. Quod erat demonstrandum. Por aqui poderemos avaliar as
dificuldades do caruncho. Nenhuma investigação policial será feita, embora este
fosse justamente o momento propício, quando a cadeira apenas se inclinou dois
graus, posto que, para dizer toda a verdade, a deslocação brusca do centro de
gravidade seja irremediável, sobretudo porque a não veio compensar um reflexo
instintivo e uma força que a ele obedecesse; seria agora o momento, repete-se,
de dar a ordem, uma severa ordem que fizesse remontar tudo, desde este instante
que não pode ser detido até não tanto à árvore (ou árvores, pois não é
garantido que todas as peças sejam de tábuas irmãs), mas até ao vendedor, ao
armazenista, à serração, ao estivador, à companhia de navegações que de longe
trouxe o tronco aparado de ramos e raízes. Até onde fosse necessário chegar
para descobrir o caruncho original e esclarecer as responsabilidades. É certo
que se articulam sons na garganta, mas não conseguirão dar essa ordem. Apenas
hesitam, ainda, sem consciência de hesitar, entre a exclamação e o grito, ambos
primários. Está portanto garantida a impunidade por hemudecimento da vítima e
por inadvertência dos investigadores, que só pro forma e rotina virão
verificar, quando a cadeira acabar de cair e a queda por enquanto ainda não
fatal estiver consumada, se a perna ou pé foi malevolamente cortado e criminosamente
também». In José Saramago, Objecto Quase, 1978, Porto Editora, 2015, ISBN
978-972-004-655-0.
Cortesia de PortoE/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Política, Cultura, Nobel, MLCT,