domingo, 21 de fevereiro de 2021

Objecto Quase. José Saramago. «A cadeira começou a cair, a ir abaixo, a tombar, mas não, no rigor do termo, a desabar. Em sentido estrito, desabar significa caírem as abas a. Ora, de uma cadeira não se dirá…»

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«Apartada do mundo, a consciência elabora sua vingança. Talvez a maior de todas seja a linguagem, destinada a ferir e referir as coisas à distância. Talhada sob medida pelas mãos de um grande escritor, tal distância, modulada ora de modo espacial, ora temporal, está sempre presente nestas seis breves e tensas narrativas de José Saramago. Será temporal em Cadeira, quando a linguagem rodopia em travellings velocíssimos em torno de um caruncho que rói, em câmera lenta, o sustento de um ditador até este cair, literalmente, de podre. Será espacial em Refluxo, onde um rei manda instalar no centro geométrico de seu país um imenso cemitério para banir de suas terras todo vestígio de morte. Será ambas, e intrínsecas à consciência humana, em Coisas e Embargo, narrativas de prender o fôlego, em que uma revolta de objectos e a falta de gasolina denunciam o círculo vicioso da existência. Absurdos, líricos, irónicos, estes contos traduzem um capitalismo em agonia, atmosfera de fim de linha, de sociedades em que os bens de consumo circulam às expensas da própria vida. Daí a escrita que se move em ciclos, emulando ritmos alternados de crise e prosperidade, parodiando a circulação também incessante, distanciada e sem sentido das mercadorias. Publicados pela primeira vez em 1978, estes contos evidenciam ainda as raízes do maravilhoso em Saramago. Não se trata, neste caso, do recurso à fábula enquanto identidade, mas sim como revolta da fantasia à indigência do real (vide o centauro, no conto de mesmo nome, marchando irremediavelmente para o mar e para a morte). Daí o permanente poder de crítica destes escritos, capazes de fundir, com extrema habilidade e conhecimento de causa, o poético, o político». In Sinopse

«O ditador caiu duma cadeira, os árabes deixaram de vender petróleo, o morto é o melhor amigo do vivo, as coisas nunca são o que parecem, quando vires um centauro acredita nos teus olhos, se uma rã escarnecer de ti atravessa o rio. Tudo são objectos. Quase»

«Se o homem é formado pelas circunstâncias, é necessário formar as circunstâncias humanamente»

Cadeira

A cadeira começou a cair, a ir abaixo, a tombar, mas não, no rigor do termo, a desabar. Em sentido estrito, desabar significa caírem as abas a. Ora, de uma cadeira não se dirá que tem abas, e se as tiver, por exemplo, uns apoios laterais para os braços, dir-se-á que estão caindo os braços da cadeira e não que desabam. Mas verdade é que desabam chuvadas, digo também, ou lembro já, para que não aconteça cair em minhas próprias armadilhas: assim, se desabam bátegas, que é apenas modo diferente de dizer o mesmo, não poderiam afinal desabar cadeiras, mesmo abas não tendo? Ao menos por liberdade poética? Ao menos por singelo artifício de um dizer que se proclama estilo? Aceite-se então que desabem cadeiras, embora seja preferível que se limitem a cair, a tombar, a ir abaixo. Desabe, sim, quem nesta cadeira se sentou, ou já não sentado está, mas caindo, como é o caso, e o estilo aproveitará da variedade das palavras, que, afinal, nunca dizem o mesmo, por mais que se queira. Se o mesmo dissessem, se aos grupos se juntassem por homologia, então a vida poderia ser muito mais simples, por via de redução sucessiva, até à ainda também não simples onomatopeia, e por aí fora seguindo, provavelmente até ao silêncio, a que chamaríamos o sinónimo geral ou omnivalente. Não é sequer onomatopeia, ou não é formável ela a partir deste som articulado (que não tem a voz humana sons puros e portanto inarticulados, a não ser talvez no canto, e mesmo assim conviria ouvir de mais perto), formado na garganta do tombante ou cadente, embora não estrela, palavras ambas de ressonância heráldica que estão designando agora aquele que desaba, pois não se achou correcto juntar a este verbo a desinência paralela (ante) que perfaria a escolha e completaria o círculo. Desta maneira fica provado que não é perfeito o mundo. Já de perfeita se apelidaria a cadeira que está a cair. Porém, mudam-se os tempos, mudam-se vontades e qualidades, o que foi perfeito deixou de o ser, por razões em que as vontades não podem, mas que não seriam razões sem que os tempos as trouxessem. Ou o tempo.

Importa pouco dizer quanto tempo este foi, como pouco importa descrever ou simplesmente enunciar o estilo de mobiliário que tornaria a cadeira, por obra de identificação, membro de uma família decerto numerosa, tanto mais que como cadeira pertence, por natureza, a um simples subgrupo ou ramo colateral, nada que se aproxime, em tamanho ou função, desses robustos patriarcas que são as mesas, os aparadores, os guarda-roupas ou pratas ou louças, ou as camas, das quais, naturalmente, é muito mais difícil cair, senão impossível, pois é ao levantar da cama que se parte a perna ou ao deitar que se escorrega no tapete, quando partir a perna não foi precisamente o resultado de escorregar no tapete. Nem cremos que importe dizer de que espécie de madeira é feito tão pequeno móvel, já de seu nome parece que fadado ao fim de cair, ou será conto-do-vigário linguístico esse latim cadere, se cadere é latim, porque devia sê-lo. Qualquer árvore poderá ter servido, excepto o pinho por ter esgotado as virtudes nas naus da índia e ser hoje ordinário, a cerejeira por empenar facilmente, a figueira por rasgar à traição, sobretudo em dias quentes e quando por causa do figo se vai longe de mais no ramo; excepto estas árvores pelos defeitos que têm, e excepto outras pelas qualidades em que abundam, como é o caso do pau-ferro onde o caruncho não entra, mas que padece de peso demasiado para o volume requerido. Outra que também não vem ao caso é o ébano, precisamente porque é apenas diferente nome de pau-ferro, e já foi visto o inconveniente de utilizar sinónimos ou supostos serem-no». In José Saramago, Objecto Quase, 1978, Porto Editora, 2015, ISBN 978-972-004-655-0.

Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, José Saramago, Literatura, Política, Cultura, Nobel, MLCT,