Zarita
«(…) Ele permaneceu na entrada
principal enquanto eu ia ao altar lateral. Eu queria pedir à Mãe de Deus que
intercedesse pelas vidas de minha mãe e o filho bebé que ela acabara de dar à
luz com muita dor e sangue. Precisei de vários minutos para que meus olhos se
acostumassem à escuridão. Não notei a porta lateral se abrir e um vulto
deslizar para o interior. Ele permaneceu no escuro, esse homem, observou-me
enquanto eu caminhava na direcção da estátua da Virgem. Esperou atrás de uma
coluna conforme eu erguia o véu, acendia uma vela e me ajoelhava para rezar. Então,
quando abri a bolsa para apanhar algum dinheiro para uma oferenda, ele se lançou
à frente.
Señorita, eu lhe imploro. Apenas
uma moeda. O quê?, Assustada, levantei-me. O homem era mais alto do que eu,
seus enormes olhos castanhos parecendo quase pretos num rosto esquelético e
cinzento com barba por fazer. Eu preciso de dinheiro, disse ele. Andei a manhã
inteira e não consegui nenhum. Não posso voltar para a minha mulher e meu filho
de mãos vazias. Estendeu a mão, a palma para cima. Fiquei subitamente ciente de
que estava sozinha com aquele rufião no interior da igreja vazia. Baixei o véu
sobre o rosto e dei um passo para trás. Ele foi à frente, para muito perto de
mim. Sua boca se abriu, exibindo dentes escurecidos e a falta destes. Um cheiro
imundo e opressor. A mão estendida roçou na minha. Soltei um gritinho de
sobressalto. Ramón veio correndo pelo corredor, após surgir pela porta
principal.
Meu filho tem fome. Minha mulher
está muito doente. Ela precisa de remédios. Uma moeda daria para comprar algo
que amenizasse o seu incómodo, falou o homem para mim. Mas não liguei para os seus
apelos. O cheiro dele e o contacto dos seus dedos, juntamente à pele áspera e às
unhas quebradas, me causaram repulsa. Que um camponês fosse tão longe a ponto
de tentar segurar a mão de uma mulher de minha posição era ultrajante. Ele me
tocou, berrei. Esse homem realmente me tocou! Ramón olhou-me horrorizado. Seu
rosto ficou vermelho de raiva. Você atacou essa mulher!, gritou para o pedinte.
N-Não, gaguejou o homem, confuso. Eu apenas pedi uma moeda. Olhou para mim, como
se eu pudesse confirmar o que ele dizia. Amedrontada, sacudi a cabeça e solucei
novamente. Ele me tocou. Por causa disso, vai morrer!, bradou Ramón, e tentou
puxar a espada da bainha. Ele, porém, não tinha praticado muito para conseguir
fazer isso com apenas um movimento. A espada ficou presa na sua túnica, ele
praguejou e sacou a adaga do cinto. O pedinte virou-se e saiu correndo pela
porta lateral. Ramón saiu em perseguição, e eu, apavorada por ter sido deixada
sozinha, ergui as saias e corri atrás dos dois.
Saulo
Eu tinha visto meu pai entrar na
igreja pela porta lateral. Mordi o lábio, constrangido, ao me dar conta de que
ele foi muito humilde e receoso de entrar pela porta principal. Ele não sabia
que eu estava lá; que o seguira durante a última hora enquanto ele caminhava
penosamente pela cidade, mendigando. Meu pai teria ficado envergonhado se
soubesse que seu filho presenciara pessoas o rejeitando e um Grande do Reino
empurrando-o para o lado e cuspindo na rua, enquanto ele passava. Ele pensava
que eu estivesse com minha mãe, sentado ao lado do colchão de palha onde ela se
encontrava deitada, incapaz de se mexer por causa da doença que a derrubara
algumas semanas antes. Supostamente, eu devia permanecer a seu lado e tentar
mantê-la quieta, pois na noite anterior ela passara a berrar palavras numa língua
desconhecida para mim. Quando isso começou, meu pai ficou muito aflito e tentou
silenciá-la para que os vizinhos não a ouvissem falar nessa língua estranha.
Então ele acariciou sua cabeça,
ao mesmo tempo que murmurava, meio que cantando, um poema no seu ouvido. Isso
pareceu acalmá-la. Quando lhe perguntei o que havia dito, ele me respondeu que
era a fala dos anjos. Mas reconheci a sua expressão: eu já a tinha visto antes no
seu rosto, em outros lugares onde vivemos, quando ele decidiu que estava na
hora de nos mudarmos; o mesmo olhar de um animal caçado que fareja perigo. Toda
a minha vida tínhamos viajado de cidade a cidade. Nessas ocasiões não pensei
muito sobre o motivo disso. Nunca havia dinheiro suficiente. Qualquer um que conseguíamos
meu pai usava para comprar remédios, pois a saúde de minha mãe sempre foi ruim,
e geralmente um de nós tinha de ficar em casa para cuidar dela. Nossos dias
eram gastos em conseguir comida suficiente para nos alimentarmos, e era isso
que estava ocupando a minha mente. Eu sabia que era um pedinte melhor do que meu
pai. Ele ficaria angustiado se descobrisse que, algumas vezes, recorri à mendicância
para termos pão. Mas eu já fizera isso antes, tirando vantagem do facto de que parecia
muito mais jovem do que realmente era. Quando nenhum de nós dois conseguia
trabalho, eu me aconchegava num vão de porta até avistar alguma señorita rica
se aproximando, então choramingava de modo patético». In Theresa Breslin, Prisioneira
da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,