domingo, 7 de março de 2021

Domingos Amaral. Os Cavaleiros de São João Baptista. «… com alguma doença, como diz ser o caso da sua tia, o desaparecimento é raro. Normalmente esquecem-se de avisar a família que iam a algum lado...»

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A Fundação. Sábado, 16 de Junho de 2002

«(…) Anda a treinar para tubarão?, perguntara o professor Bernardino. Será que estava a vender a alma ao Diabo? A sua ambição profissional justificava isto? Seria o desejo por Mariana que o toldava, mantendo-o agarrado a um emprego tão duvidoso? E onde raio se tinha metido ela? A voz de Gloria Gaynor começou a entoar I Will Survive, seguindo a play list habitual dos casórios. Na pista, os seus amigos Inês e Francisco dançavam alegres. Mas a ele não lhe apeteceu.

A Fundação. Domingo, 17 de Junho de 2002

Bolos de arroz, disse o rapaz, levantando-se. A tia traz-me sempre bolos de arroz... Hoje não trouxe. Foi aquela referência aos bolos de arroz que quebrou a animosidade entre eles. Com o inspector Júlio César era assim: se lhe estragavam um pacato Domingo, passado tranquilamente no piquete da Polícia Judiciária (PJ) de Setúbal, antipatizava com as pessoas. Mas calhava existir um interesse comum, e sentia logo uma ligação cósmica que o fazia simpatizar com elas. Era o caso dos bolos de arroz. Se o rapaz tivesse dito palmiers, ou éclairs, nada teria mudado. Mas bolos de arroz eram bolos de arroz... O rapaz Parecia regressado da praia, de calções e sandálias, areia colada aos pés. Talvez vinte e cinco anos, pensou o inspector. Magro, nariz achatado, bigodinho cortado rente, brinco na orelha direita, cabelo encaracolado, castanho-escuro. Um olhar nervoso, preocupado, um tom de voz de criança mimada a quem haviam provocado uma inesperada desilusão. A tia desapareceu, queixou-se, coçando a orelha com a mão, lembrando ao inspector o cãozito rafeiro da vizinha, que passava os dias a coçar as pulgas.

Júlio César tentou uma rota de fuga. Não desejava acabar mal o Domingo, caramba. O procedimento normal é avisar a GNR. O rapaz alvoroçou-se, indignado: já fui à GNR de Alcácer... Porque é que ninguém quer fazer nada neste país? Típico dos portugueses: não se faz o que eles querem e põem logo o país em causa! O inspector, irritação a crescer nos pêlos do pescoço, ainda pensou em justificar a suposta inércia dos compatriotas com o calor. A tia não desaparecia assim! Não vê que o carro dela também desapareceu? Vejo, vejo, pensou Júlio César, e levas um grito se continuas a falar assim comigo, ó campista charrado! Mas, é claro, não o disse. Na corporação eram ensinados a atender o público com cortesia. Mesmo quando o público lhes mexia com os nervos. Olhou para o relógio de soslaio. Seis e meia. O turno só iria acabar às oito. Que seca monumental! Pensou em mandá-lo embora. Foi aí que o rapaz falou nos bolos de arroz. Normalmente a tia passava pela pastelaria. Hoje não passou. Aliás, eu fui lá a casa dela, por volta das três da tarde. Toquei à campainha e ninguém respondeu... Júlio César olhou para ele: gosta de bolos de arroz?

O rapaz confirmou com a cabeça. Portanto, só podia ser boa pessoa. Júlio César suspirou e decidiu dar-lhe uma oportunidade. Dirigiu-o para uma pequena sala, levando um bloco e um lápis. Acendeu um SG Filtro. Ofereceu um. O rapaz não quis fumar. Sentou-se do lado de lá da mesa e esperou, mexendo na orelha, repetindo o movimento canino. Conte-me lá o que se passou. O rapaz relatou o costume familiar: almoço com a tia ao Domingo, de quinze em quinze dias, ao qual ela nunca faltara em cinco anos. Nervoso, o rapaz levantou-se. Quando foi a última vez que falou com ela?, perguntou Júlio César, indicando que ele se devia sentar. Ontem.

O rapaz sentou-se e contou: falara com a tia pelo telefone, por volta das três da tarde. Combinara o almoço de Domingo para a uma e um quarto, como sempre. A tia ia à missa do meio-dia e depois ia ter com ele. A vizinha do lado dissera-lhe que a tinha visto a sair ontem, por volta das cinco e pouco, mas não voltara a vê-la. O rapaz tornou a levantar-se. Como é que sabe que ela não está em casa?, perguntou Júlio César. Disse que tinha tocado, mas... Sente-se por favor. Entrei em casa. O rapaz sentou-se de novo. Há coisa de dois anos, contou, a tia dera-lhe uma chave da casa, que nunca usara até hoje. Não havia nada fora do lugar, contou o rapaz. A cama feita, a casa aspirada. A tia aproveitava os sábados de manhã para limpar a casa, pois passava a semana a limpar as dos outros. Trabalha em casa de quem?, perguntou Júlio César, notando que o rapaz dizia a tia como se fosse apenas uma palavra.

O rapaz levantou-se de novo. Não sabia bem os nomes, explicou: a tia trabalhava em duas ou três casas, em Alcácer, e também num monte. Mas não ao sábado. Ao sábado a tia nunca trabalhava para fora. Júlio César lembrou-se de que nem sabia o nome dele. Desculpe, como se chama? Armando José Barreiros. O inspector apontou o nome e depois ordenou: okay. Agora sente-se. O rapaz sentou-se. Júlio César perguntou o nome da tia. Elvira dos Santos Barreiros. É irmã do meu pai, esclareceu o rapaz, mexendo de novo na orelha. Nos últimos tempos, não notou nada de estranho no comportamento da sua tia? Não lhe ouvira nem lamúrias nem revelações. O rapaz voltou a levantar-se. Júlio César suspirou. Mais valia desistir de o mandar sentar. Deve ser para isto que serve o sistema nervoso, pensou, antes de comentar: se não são pessoas com problemas, com alguma doença, como diz ser o caso da sua tia, o desaparecimento é raro. Normalmente esquecem-se de avisar a família que iam a algum lado...» In Domingos Amaral, Os Cavaleiros de São João Baptista, 2004, Leya, BIS, 2015, ISBN 978-989-660-373-1.

Cortesia de Leya/BIS/JDACT

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