A Fundação. Sábado, 16 de Junho de 2002
«(…) Anda a treinar para tubarão?,
perguntara o professor Bernardino. Será que estava a vender a alma ao Diabo? A
sua ambição profissional justificava isto? Seria o desejo por Mariana que o
toldava, mantendo-o agarrado a um emprego tão duvidoso? E onde raio se tinha metido ela? A voz de Gloria
Gaynor começou a entoar I Will
Survive, seguindo a play list habitual dos casórios. Na pista, os
seus amigos Inês e Francisco dançavam alegres. Mas a ele não lhe apeteceu.
A Fundação. Domingo, 17 de Junho de 2002
Bolos de arroz, disse o rapaz,
levantando-se. A tia traz-me sempre bolos de arroz... Hoje não trouxe. Foi
aquela referência aos bolos de arroz que quebrou a animosidade entre eles. Com
o inspector Júlio César era assim: se lhe estragavam um pacato Domingo, passado
tranquilamente no piquete da Polícia Judiciária (PJ) de Setúbal, antipatizava
com as pessoas. Mas calhava existir um interesse comum, e sentia logo uma ligação
cósmica que o fazia simpatizar com elas. Era o caso dos bolos de arroz. Se o
rapaz tivesse dito palmiers, ou éclairs, nada teria mudado. Mas bolos de arroz
eram bolos de arroz... O rapaz Parecia regressado da praia, de calções e sandálias,
areia colada aos pés. Talvez vinte e cinco anos, pensou o inspector. Magro,
nariz achatado, bigodinho cortado rente, brinco na orelha direita, cabelo
encaracolado, castanho-escuro. Um olhar nervoso, preocupado, um tom de voz de
criança mimada a quem haviam provocado uma inesperada desilusão. A tia
desapareceu, queixou-se, coçando a orelha com a mão, lembrando ao inspector o cãozito
rafeiro da vizinha, que passava os dias a coçar as pulgas.
Júlio César tentou uma rota de
fuga. Não desejava acabar mal o Domingo, caramba. O procedimento normal é
avisar a GNR. O rapaz alvoroçou-se, indignado: já fui à GNR de Alcácer... Porque
é que ninguém quer fazer nada neste país? Típico dos portugueses: não se faz o
que eles querem e põem logo o país em causa! O inspector, irritação a crescer
nos pêlos do pescoço, ainda pensou em justificar a suposta inércia dos
compatriotas com o calor. A tia não desaparecia assim! Não vê que o carro dela
também desapareceu? Vejo, vejo, pensou Júlio César, e levas um grito se
continuas a falar assim comigo, ó campista charrado! Mas, é claro, não o
disse. Na corporação eram ensinados a atender o público com cortesia. Mesmo
quando o público lhes mexia com os nervos. Olhou para o relógio de soslaio.
Seis e meia. O turno só iria acabar às oito. Que seca monumental! Pensou em
mandá-lo embora. Foi aí que o rapaz falou nos bolos de arroz. Normalmente a tia
passava pela pastelaria. Hoje não passou. Aliás, eu fui lá a casa dela, por
volta das três da tarde. Toquei à campainha e ninguém respondeu... Júlio César
olhou para ele: gosta de bolos de arroz?
O rapaz confirmou com a cabeça.
Portanto, só podia ser boa pessoa. Júlio César suspirou e decidiu dar-lhe uma
oportunidade. Dirigiu-o para uma pequena sala, levando um bloco e um lápis.
Acendeu um SG Filtro. Ofereceu um. O rapaz não quis fumar. Sentou-se do lado de
lá da mesa e esperou, mexendo na orelha, repetindo o movimento canino. Conte-me
lá o que se passou. O rapaz relatou o costume familiar: almoço com a tia ao
Domingo, de quinze em quinze dias, ao qual ela nunca faltara em cinco anos.
Nervoso, o rapaz levantou-se. Quando foi a última vez que falou com ela?,
perguntou Júlio César, indicando que ele se devia sentar. Ontem.
O rapaz sentou-se e contou:
falara com a tia pelo telefone, por volta das três da tarde. Combinara o almoço
de Domingo para a uma e um quarto, como sempre. A tia ia à missa do meio-dia e
depois ia ter com ele. A vizinha do lado dissera-lhe que a tinha visto a sair
ontem, por volta das cinco e pouco, mas não voltara a vê-la. O rapaz tornou a levantar-se.
Como é que sabe que ela não está em casa?, perguntou Júlio César. Disse que tinha
tocado, mas... Sente-se por favor. Entrei em casa. O rapaz sentou-se de novo. Há
coisa de dois anos, contou, a tia dera-lhe uma chave da casa, que nunca usara até
hoje. Não havia nada fora do lugar, contou o rapaz. A cama feita, a casa
aspirada. A tia aproveitava os sábados de manhã para limpar a casa, pois
passava a semana a limpar as dos outros. Trabalha em casa de quem?, perguntou Júlio
César, notando que o rapaz dizia a tia como se fosse apenas uma palavra.
O rapaz levantou-se de novo. Não
sabia bem os nomes, explicou: a tia trabalhava em duas ou três casas, em Alcácer,
e também num monte. Mas não ao sábado. Ao sábado a tia nunca trabalhava para
fora. Júlio César lembrou-se de que nem sabia o nome dele. Desculpe, como se
chama? Armando José Barreiros. O inspector apontou o nome e depois ordenou: okay.
Agora sente-se. O rapaz sentou-se. Júlio César perguntou o nome da tia. Elvira
dos Santos Barreiros. É irmã do meu pai, esclareceu o rapaz, mexendo de novo na
orelha. Nos últimos tempos, não notou nada de estranho no comportamento da sua tia?
Não lhe ouvira nem lamúrias nem revelações. O rapaz voltou a levantar-se. Júlio
César suspirou. Mais valia desistir de o mandar sentar. Deve ser para isto que
serve o sistema nervoso, pensou, antes de comentar: se não são pessoas com
problemas, com alguma doença, como diz ser o caso da sua tia, o desaparecimento
é raro. Normalmente esquecem-se de avisar a família que iam a algum lado...» In
Domingos Amaral, Os Cavaleiros de São João Baptista, 2004, Leya, BIS, 2015,
ISBN 978-989-660-373-1.
Cortesia de Leya/BIS/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Templários, Literatura, Conhecimento,