«Como bem nos lembra Virginia Woolf (2000), a história das mulheres precisa não apenas ser descoberta mas também inventada. Essa motivação tem permitido a produção de romances contemporâneos que, através de uma voz autoral feminina, criam personagens capazes de contar suas próprias histórias, reconstruindo ficcionalmente a biografia de mulheres fascinantes, contribuindo, cada vez mais, para a visibilidade das mulheres. Esquecida pela historiografia tradicional, a pintora renascentista italiana Artemisia Gentileschi foi representada de maneira distorcida e sua genialidade artística foi ignorada, de forma que a autoria de suas obras foram atribuídas a outros artistas e a seu pai. A recente (re) descoberta e o reconhecimento da pintora têm motivado riquíssimos estudos, além de três romances e um filme. A partir das contribuições dos estudos feministas e da metaficção historiográfica, analiso no meu trabalho algumas dessas representações literárias e não-ficcionais da artista, com ênfase no romance The Passion of Artemisia (2000) da escritora contemporânea da USA, Susan Vreeland; enfatizamos a impossibilidade de reconstituição da verdade histórica sobre a vida de Artemisia Gentileschi». In Resumo
«O presente trabalho objectiva analisar obras literárias e não ficcionais sobre a pintora renascentista italiana Artemisia Gentileschi. Após um silêncio que durou quase três séculos, a artista tem sido recuperada apenas recentemente pelos Estudos Feministas. Seu reconhecimento tem, cada vez mais, motivado obras a partir de múltiplos olhares que, consequentemente, produziram diferentes representações desta mesma personagem histórica.
Nascida em Roma, no ano de 1593, Artemisia tem se destacado cada vez mais como uma das poucas mulheres a adquirir reconhecimento em um momento histórico em que elas dificilmente eram aceitas pela comunidade artística. Naquela época, se uma mulher decidisse tornar-se uma artista, ela não poderia trilhar o caminho tradicional destinado aos homens, pois não havia possibilidade de receber formação com os grandes mestres, realizar viagens, conviver com a comunidade artística ou participar de outras actividades que aconteciam no espaço público, ao qual elas tinham pouco acesso. O único contato de Artemisia com a pintura foi através de seu pai, o famoso pintor Orazio Gentileschi, de quem recebeu os primeiros ensinamentos; ela foi a única dos quatro filhos, sendo três deles homens, de Orazio, que desenvolveu aptidão para a pintura. Com apenas 17 anos, ela já havia pintado os famosos quadros Madona com o Menino Jesus (1609) e Susana e os Anciãos (1610). Vale destacar que, mesmo vivendo numa época na qual as mulheres, quando pintavam, o que era raro , eram consideradas capazes de pintar apenas retratos e cenas domésticas, Artemisia pintou heroínas mitológicas e históricas como nos quadros Judite decapitando Holofernes (1620), Cleópatra (1622) e Lucrécia (1621). Seus quadros são considerados marcantes também pela forma inovadora como ela representou essas personagens. Essas mulheres eram tradicionalmente pintadas por artistas masculinos como figuras delicadas e passivas. No entanto, apesar de utilizar as mesmas técnicas, Artemisia propôs uma perspectiva diferenciada, na qual essas personagens são representadas como corajosas, fortes e determinadas.
Um
dos episódios mais conhecidos e marcantes da sua vida e que, para muitos
historiadores da arte, influenciou várias das suas obras, foi o abuso sexual
que sofreu aos 17 anos. O agressor, Agostino Tassi, pintava algumas obras em
parceria com Orazio Gentileschi e foi escolhido para ensiná-la algumas técnicas
de perspectiva. Devido à ausência do pai, Tassi aproveitou-se desses momentos
para abusar dela. Orazio Gentileschi, então, levou Tassi a julgamento no ano de
1611, acusando-o de não somente ter tirado a virgindade da sua filha mas também
por ter roubado uma das suas pinturas. Durante o processo, Tassi alegou que as
relações foram consensuais e que ela também já havia mantido relações sexuais
com outros homens. No entanto, Artemisia afirmava que havia sido violada por
ele e deixou que a situação ocorresse outras vezes porque Tassi prometeu que se
casaria com ela. Para comprovar que realmente estava falando a verdade,
Artemisia foi submetida a um exame ginecológico feito por parteiras, além de
ser torturada para confirmar seu testemunho. Ao fim do julgamento, Tassi é
considerado culpado. No entanto, não há nenhuma evidência de que ele foi
sentenciado, apenas de que ele foi liberado um mês após o depoimento da última
testemunha.
Apesar de Artemisia ter passado pela dolorosa e escandalosa experiência do estupro e do julgamento, seu pai conseguiu arranjar-lhe um casamento com o artista Pietro Antonio di Vicenzo Stiattesi. A cerimónia aconteceu em Novembro de 1612, quando ela, então, passou a morar em Florença, cidade natal do pintor. Nesta, tornou-se bastante conhecida, chegando a ser a primeira mulher aceita na famosa Accademia del Disegno, formada pelos mais renomados artistas da corte de Cosimo de Medici I. Um dos seus primeiros trabalhos foi uma encomenda de Michelangelo Buonarroti, sobrinho do ilustre artista Michelangelo, para a reforma da casa da família. Além de ter sido uma das artistas mais bem remuneradas do projecto, esse trabalho também ajudou a impulsionar a carreira. Posteriormente, ela recebeu várias comissões e o apoio de influentes pessoas como Cosimo de Medici II e Cristina de Lorena, a Grã-Duquesa de Toscana. As encomendas lhe possibilitaram uma independência financeira, que a tornou capaz de viver sem depender do cônjuge. Essa liberdade permitiu também que ela morasse, já separada de seu marido, com sua filha nas cidades de Génova, Veneza e Roma, a fim de pintar para outros patronos.
Embora houvesse ganho notoriedade no século XVII, Artemisia Gentileschi foi esquecida por quase 300 anos. Segundo a historiadora da arte e pesquisadora da vida e obra da pintora, Mary D. Garrard, Artemisia foi pouquíssimo mencionada por pesquisadores e biógrafos nos séculos XVII e XVIII, evidência de que nenhum deles reconheceu a verdadeira importância da artista, chegando a atribuir várias de suas obras ao seu pai e a outros pintores. Apenas a partir das últimas décadas do século XX, graças, sobretudo, aos esforços de pesquisas na área dos Estudos Feministas, Artemisia foi (re)descoberta e reconhecida como uma das primeiras mulheres a produzir uma arte considerada genial e também como uma das grandes artistas do barroco italiano». In Rachel Nóbrega S. Fé, Histórias Possíveis. As Narrativas sobre Artemisia Gentilrschi, Dissertação de Mestrado em Literatura da Universidade de Brasília, IL, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, 2014.
Cortesia de UBrasília/IL/DTLLiteraturas/JDACT
JDACT, Artemisia Gentilrschi, Pintura, Século XVI, A Arte,