28 de Maio de 1944
«(…) Sem reflectir muito, ela
respondera que sim. Todos os rapazes com quem estudara em Oxford vinham
arriscando a vida na guerra. Que motivos teria para não fazer o mesmo? Dois dias
após o Natal de 1941, ela começara o seu treino na Executiva de Operações Especiais.
Dentro de seis meses, dada a escassez de rádios e a enorme dificuldade de se
encontrar operadores habilitados a usá-los, Flick já levava mensagens da matriz
da Executiva em Londres, que ficava no número 64 da Baker Street, para os
grupos de resistência na França ocupada. Ela saltava de paraquedas, transitava
com documentos falsos, contatava a Resistência, repassava ordens, depois
anotava respostas, reclamações e solicitações de armas e munição. Para a viagem
de volta, era recolhida por um avião, geralmente um Westland Lysander de três
lugares, pequeno o bastante para aterrar em qualquer ponto onde houvesse quinhentos
metros de relva baixa.
Do trabalho como mensageira, ela
passara à organização de manobras de sabotagem. Os agentes da Executiva de
Operações Especiais eram quase todos oficiais do Exército e, teoricamente, a
Resistência era o seu destacamento. Contudo, na prática a Resistência não se curvava
à disciplina militar e, para conquistar o apoio dos seus integrantes, o oficial
precisava ter conhecimento, voz activa e pulso firme. O trabalho era perigoso.
Seis homens e duas mulheres haviam concluído o curso de treino junto com Flick.
Dois anos depois, ela era a única ainda no activo. Não restava dúvida de que
duas pessoas do grupo estavam mortas: uma sofrera um acidente de paraquedas e
outra fora assassinada pela Milícia francesa, a odiosa força paramilitar que os
alemães ajudaram a criar para combater a Resistência. As outras seis tinham
sido capturadas, interrogadas e torturadas, depois levadas para os campos de
prisioneiros na Alemanha, de onde nunca haviam saído. Flick sobrevivera porque
era guerreira, pensava rápido e beirava a paranóia no cuidado que tinha com os
procedimentos de segurança.
A seu lado estava Michel, seu
marido, líder de uma célula da Resistência francesa que havia recebido o
codinome de Bollinger e tinha como base de operações a cidade de Reims, famosa
por sua catedral e situada a uns 15 quilómetros de Sainte-Cécile. Embora
estivesse prestes a arriscar a vida, Michel se recostava despreocupado na
cadeira, com o tornozelo direito apoiado no joelho esquerdo, empunhando um copo
grande com a cerveja rala e sem cor dos tempos de guerra. Seu sorriso fácil
conquistara o coração de Flick quando ela ainda estava na Sorbonne, escrevendo a
sua tese sobre a ética de Molière, que seria obrigada a abandonar com a eclosão
da guerra. À época ele era um jovem professor de filosofia que tinha aparência
desleixada e um séquito de admiradores entre os alunos.
Michel ainda era o homem mais
sexy que ela já conhecera. Alto, vestia-se de um modo ao mesmo tempo elegante e
displicente, com os casacos sempre amarfanhados e as camisas azuis desbotadas.
Os cabelos eram um pouco mais compridos do que deveriam ser. A voz sensual era
um convite para a cama e os olhos azuis, quando focavam uma mulher, faziam com
que ela se sentisse a única no mundo inteiro. Para Flick, aquela missão fora
uma óptima oportunidade para passar alguns dias na companhia do marido, mas nem
tudo tinham sido flores. Não que eles houvessem brigado, mas Michel dava a
impressão de que já não sentia o mesmo afecto de antes, de que apenas seguia os
protocolos do casamento, e isso a magoava. A intuição lhe dizia que ele andava
interessado em outra mulher. Michel tinha apenas 35 anos, e o seu charme
desleixado exercia algum fascínio sobre as mais jovens. Não ajudava em nada o
facto de que, por causa da guerra, eles haviam passado mais tempo afastados do
que juntos desde que se casaram. Não faltavam francesinhas, tanto na Resistência
quanto fora dela, que se dispunham a consolá-lo.
Flick ainda amava Michel. Mas de
outro jeito. Não tinha por ele aquela mesma adoração cega da lua de mel,
tampouco pretendia passar uma vida inteira dedicando-se exclusivamente à
felicidade dele. A neblina matinal do amor romântico já se dissipara e agora,
sob a luz implacável da vida matrimonial, ela podia ver que Michel era um homem
vaidoso, egocêntrico e pouco confiável. No entanto, quando se dispunha a colocá-la
no centro das suas atenções, ainda era capaz de fazê-la sentir-se uma mulher
bonita, desejada e especial. Os encantos de Michel também funcionavam sobre os
homens, e ele era um excelente líder, corajoso e carismático. Ele e Flick
haviam traçado juntos o plano de acção daquela noite: atacariam o castelo em
duas frentes distintas, dividindo as defesas, depois se reencontrariam no
interior da construção e desceriam ao porão para explodir os equipamentos
principais da central telefónica.
Eles
dispunham da planta baixa do prédio, presente de Antoinette Dupert, supervisora
do grupo de mulheres locais que limpava o castelo todas as noites. Por coincidência,
Antoinette era também tia de Michel. A limpeza começava às sete, mesma hora da
missa, e Flick já avistava algumas mulheres apresentando seus passes especiais
ao guarda junto ao portão de ferro. A planta fornecida por Antoinette indicava
apenas a entrada do porão, pois o lugar era de acesso exclusivo a alemães e a
limpeza era feita por soldados. O plano de ataque de Michel tinha por base os
relatos do MI6, o serviço secreto britânico, segundo os quais o castelo era
protegido por um destacamento da Waffen SS, a tropa de elite nazista, que
operava em três turnos de doze homens cada. Os funcionários da Gestapo que trabalhavam
ali não eram treinados para combate; a maioria sequer estaria armada. A célula Bollinger
havia conseguido arregimentar quinze pessoas para o ataque. Agora, com as armas
escondidas sob a roupa ou no interior de bolsas e sacolas, elas se misturavam
aos grupos que aguardavam a missa na igreja e aos que passeavam tranquilamente
na praça. Se as informações do MI6 estivessem correctas, haveria mais representantes
da Resistência do que sentinelas alemãs na hora do ataque». In Ken
Follett, As Espias do Dia D, 2001, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978- 858-041-410-3.
Cortesia de EArqueiro/JDACT
JDACT, Ken Follett, Literatura, II Guerra Mundial,