Saulo
«(…) O corpo do meu pai
estremeceu num último espasmo. Os braços caíram para os lados. Para mim,
parecia que ele os estendia para me abraçar. Pulei para o pátio e corri até ele,
as lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Pai! Pai!, gritei. Pai! Dom Vicente
parou na soleira da porta da casa. Examinou-me com desdém. Eu deveria imaginar.
Uma podridão como essa sempre gera mais sujeira. Suas feições se contraíram
formando linhas de profunda repugnância. É melhor eliminar o fruto e a semente.
Abanou a mão numa ordem para os soldados. Que o filho do mendigo dance a mesma
dança. O tenente gesticulou com a cabeça para o ajudante de cavalariça. Traga
outra corda, disse ele.
Zarita
Meu pai, dom Vicente Alonzo
Carbazón, era conhecido na nossa cidade de Las Conchas pela severidade em lidar
com criminosos, mas eu nunca tinha visto um ódio tão frio no seu rosto antes
daquele terrível dia de Verão. Alertado pela agitação, ele veio à porta de
nossa casa. Após ouvir de Ramón a versão deturpada dos acontecimentos, ele
atingiu a boca do pedinte com tanta força que o rosto do homem se abriu como
uma romã rebentando. A visão do pobre homem rastejando a seus pés pareceu
inflamar em vez de aplacar a raiva de pai. Eu não sabia que ele estava
enfurecido pela tristeza e perdera o controle das emoções. Pai. Pousei a mão no
seu braço, mas ele a afastou e me dispensou. Então: o horror! Mandaram buscar
uma corda. Olhei para Ramón, para que ele parasse com aquilo, mas ele
continuava furioso por ter sido humilhado na igreja e ter precisado convocar
soldados para ajudá-lo a capturar um camponês debilitado. A terrível satisfação
revelada no seu comportamento me disse que não adiantava apelar para que ele
detivesse o pai.
Recuei cambaleante pela soleira
da porta enquanto os soldados executavam a sua horrível tarefa. Então um rapaz
saltou de cima do muro da propriedade e correu na nossa direcção, soluçando e
gritando pelo pai. Um dos soldados o agarrou pelo cós dos calções e o ergueu no
ar. Mais um para os corvos arrancarem os olhos, gargalhou. E ouvi palavras
desprezíveis vomitadas da boca de pai, que mandou o tenente enforcar o rapaz
com o pai. Pai! Dessa vez, meu grito agudo chamou-lhe a atenção. O rapaz não
estava na igreja. Ele não tem nada a ver com isso.
Esses ladrões e salteadores agem
em bandos , disse-me o pai. Ele tentou-me fazer entrar em casa. Você é jovem e
inocente demais, minha filha, para saber de certas coisas. Ele não passa de uma
criança. Puxei a manga da camisa do pai. Olhe para ele. Pense no seu filho
recém-nascido. Eu não tenho filho. Encarei o pai. Então notei algo que não
tinha percebido antes. Ele não estava vestido de maneira apropriada, e os
cabelos e a barba estavam desgrenhados. Seu irmão morreu meia hora atrás,
explicou. Ah, não! Lágrimas quentes inundaram meus olhos. Minha mãe suportou nove
gravidezes desde o meu nascimento, com todas elas, excepto esta última, resultando
em abortos. E, agora, o bebé estava morto. Não admirava que o pai estivesse
descontrolado. Pai! Pai! Lá fora, o rapaz continuava lutando e se esticando
para tocar no cadáver do pai que pendia da árvore. Mas o laço de uma segunda
corda foi colocado em volta do seu pescoço e o tenente jogou a longa
extremidade por cima do mesmo galho. Você estará com o seu pai muito em breve,
zombou um dos soldados. Ele começou a puxar a ponta da corda, e o rapaz
ergueu-se no ar, as pernas chutando do mesmo modo como fizeram as de seu pai
havia menos de cinco minutos. Ajoelhei-me diante do meu pai. Pense na mamã,
implorei. É uma mãe bondosa e gentil para mim. Ela não iria querer que esse
rapaz morresse assim como o seu próprio filho. O rosto de meu pai se contraiu,
e ele colocou as mãos sobre o rosto. Sua mamã..., começou, mas não conseguiu
continuar. Soluços agitaram seu corpo. Mamã? Minha respiração congelou nos
pulmões. Mamã! Diga-me que nada aconteceu a ela. Por favor, pai. Diga-me que
ela está viva. Ela está viva, confirmou ele, mas não por muito tempo. Ele
hesitou, então gesticulou para o tenente. Já houve muitas mortes nesta casa por
um dia. Pouparei a vida do rapaz, mas cuide para que ele seja mandado para onde
eu nunca mais o veja. Meio decepcionados, os soldados largaram a corda, e o
rapaz caiu no chão com um estrondo, onde permaneceu estremecendo, aturdido, mas
vivo». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera
Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,