«Naquele aprazível rincão da alegre Inglaterra, banhado pelo rio Dom, existiu, em tempos que já lá vão, uma grande floresta recobrindo os belos montes e vales estendendo-se entre Sheffield e a deliciosa cidade de Doncaster. Os restos dessa imensa mata ainda se percebem junto dos nobres assentos de Wentworth, de Wharnclifie Park e ao redor de Rotherham. Ali vagueou, no passado, o Dragão de Wantley, lá se travaram muitas das mais desesperadas batalhas da Guerra Civil das Rosas e ainda naqueles lados viveram outrora, aqueles bandos de galantes proscritos cujos feitos os cantares ingleses tão populares tornariam. Será este o nosso principal cenário, decorrendo a nossa história no período final do reinado de Ricardo I (1157-1199), quando no seu retorno de demorado cativeiro, concretizou algo que os seus súbditos, desesperados, mais desejavam do que esperançavam, enquanto iam sendo submetidos a todos os géneros de opressão. Os nobres, cujo poder se exorbitara, durante o reinado de Estêvão (1135-1154), e de quem a prudência de Henrique II (1154-1189) quase não conseguira obter um mínimo de sujeição à coroa, usufruíam, no momento, da sua anterior licença sob a mais vasta forma, desprezando a débil interferência do Conselho de Estado inglês, fortificando os seus castelos, aumentando o número dos seus dependentes, obrigando a vassalagem todos à sua volta e tudo fazendo para conseguirem juntar forças bastantes para lhes concederem um lugar cimeiro nas convulsões nacionais que pareciam aproximar-se.
A situação da classe mediana, os
rendeiros-livres, como lhes chamavam, a quem a lei e o espírito da Constituição
inglesa concediam independência da tirania feudal, era agora verdadeiramente
precária. Se, como era frequente, se colocavam sob a protecção de algum
reizinho das vizinhanças, ocupando posições dentro da engrenagem feudal do paço,
a ele se prendendo por laços de tratados de aliança e protecção mútuas, ou
apoiando-os nos seus empreendimentos, conseguiam, por vezes, um repouso temporário,
obtido claro é, com o sacrifício da independência pessoal, sempre tão arraigada
no íntimo de todos os ingleses, e sujeitando-se ao perigo de se verem
envolvidos, como elementos de qualquer irreflectida expedição para a qual a
ambição dos seus protectores os arrastasse. Por outro lado, era tanta e tão
variada a capacidade de humilhação e opressão de que os grandes fidalgos
gozavam, que nunca conseguiam pretextos e raramente a força de vontade para
importunar mesmo quando à beira da própria destruição, os seus menos poderosos
vizinhos que tentassem fugir à sua autoridade procurando protecção contra os
perigos do tempo numa conduta inofensiva nas leis da terra.
Uma
das causas que grandemente concorriam para o aumento da tirania da nobreza e
sofrimento das classes inferiores advinha das consequências da conquista, pelo
duque Guilherme, da Normandia. Quatro gerações não tinham sido bastantes para
ligar os sangues incompatíveis de Normandos e Anglo-Saxões, ou, mesmo: para
unir, por uma língua única e interesses comuns, duas raças hostis, uma das
quais ainda vibrava com a altivez da vitória, enquanto a outra prosseguia gemendo
sob o peso da derrota. Como resultado da batalha de Hastings (1066) o poder
passara totalmente para as mãos da nobreza normanda, mãos que, como nos contam
os livros de história, não o empregavam com muita moderação. Toda uma geração
de príncipes e nobres saxões fora extirpada. ou deserdada, com poucas ou
nenhumas excepções, da mesma forma que poucos eram os das classes logo abaixo
deles e das mais inferiores ainda que possuíssem, como proprietários, terras no
país dos seus pais. A política real fora, desde sempre, a de enfraquecer por
quaisquer meios uma parte da população que era vista, e com realismo, como
sentindo a maior das antipatias para com o seu vencedor. Todos os monarcas de
raça normanda continuadamente evidenciaram a mais marcada das preferências
pelos seus súbditos normandos. As leis da caça, um exemplo entre muitos, e
outras, igualmente desconhecidas pela menos rigorosa e de espírito mais aberto
Constituição saxónica, haviam sido carregadas ao serviço do povo já subjugado,
acrescentando-lhes mais peso ainda às correntes feudais que já arrastavam. Na
corte e nos castelos dos grandes nobres, que imitavam a pompa e a forma de agir
dos cortesãos, o francês da Normandia era a única língua a ser utilizada. Nos
tribunais, nos debates e nos julgamentos empregava-se também o mesmo idioma.
Resumindo, o francês era a fala da honraria, da cavalaria e até da justiça,
enquanto o mais masculino e expressivo anglo-saxão fora deixado para uso de rústicos
e bisonhos labregos que mais não sabiam. No entanto, a necessidade de inevitáveis
contatos entre os senhores da terra e os oprimidos seres inferiores que as cultivavam
já começavam a levar à gradual criação de um dialecto feito duma mistura de
francês e anglo-saxão, através do qual se iam entendendo uns com os outros.
Seria a partir desta mesma necessidade que, lentamente, se formaria a estrutura
da nossa língua actual, o inglês, onde os falares dos vencedores e vencidos, em
harmoniosa fusão, se entrelaçaram, enriquecendo-se depois com aquisições aos
idiomas clássicos e às línguas europeias do Sul». In Walter Scott, Ivanhoe, 1819-1820, Publicações
Europa-América, colecção Livros de Bolso, 1985, ISBN 978-972-101-237-0.
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