Cortesia
de wikipedia e jdact
«O
homem que conduz a camioneta chama-se Cipriano Algor, é oleiro de profissão e tem
sessenta e quatro anos, posto que à vista pareça menos idoso. O homem que está sentado
ao lado dele é o genro, chama-se Marçal Gacho, e ainda não chegou aos trinta.
De todo o modo, com a cara que tem, ninguém lhe daria tantos. Como já se terá
reparado, tanto um como outro levam colados ao nome próprio uns apelidos
insólitos cuja origem, significado e motivo desconhecem. O mais provável será
sentirem-se desgostosos se alguma vez vierem a saber que aquele algor significa
frio intenso do corpo, prenunciador de febre, e que o gacho é nada mais nada
menos que a parte do pescoço do boi em que assenta a canga. O mais novo veste
uniforme, mas não está armado. O mais velho traja um casaco civil e umas calças
mais ou menos a condizer, leva a camisa sobriamente fechada no colarinho, sem
gravata. As mãos que manejam o volante são grandes e fortes, de camponês, e,
não obstante talvez por efeito do quotidiano contacto com as maciezas da argila
a que o ofício obriga, prometem sensibilidade. Na mão direita de Marçal Gacho
não há nada de particular, mas as costas da mão esquerda apresentam uma
cicatriz com aspecto de queimadura, uma marca em diagonal que vai da base do
polegar à base do dedo mínimo. A camioneta não merece esse nome, é apenas uma
furgoneta de tamanho médio, de um modelo fora de moda, e vai carregada de
louça. Quando os dois homens saíram de casa, vinte quilómetros atrás, o céu
ainda mal começara a clarear, agora a manhã já pôs no mundo luz bastante para
que se possa observar a cicatriz de Marçal Gacho e adivinhar a sensibilidade
das mãos de Cipriano Algor. Vêm viajando a velocidade reduzida por causa da
fragilidade da carga e também pela irregularidade do pavimento da estrada. A
entrega de mercadorias não consideradas de primeira ou segunda necessidades,
como é o caso das louças rústicas, faz-se, de acordo com os horários fixados, a
meio da manhã, e se estes dois homens madrugaram tanto foi porque Marçal Gacho
tem de marcar o ponto pelo menos meia hora antes de as portas do Centro serem
abertas ao público. Nos dias em que não traz o genro, mas tem louças para
transportar, Cipriano Algor não precisa de se levantar tão cedo. Contudo, de
dez em dez dias, é sempre ele quem se encarrega de ir buscar Marçal Gacho ao
trabalho para passar com a família as quarenta horas de folga a que tem
direito, e quem, depois, com louça ou sem louça na caixa da furgoneta,
pontualmente o reconduz às suas responsabilidades e obrigações de guarda
interno. A filha de Cipriano Algor, que se chama Marta, de apelidos Isasca, por
parte da mãe já falecida, e Algor, por parte do pai, só goza da presença do
marido em casa e na cama seis noites e três dias em cada mês na noite antes
desta ficou grávida, mas ainda não o sabe.
A região é fosca, suja, não
merece que a olhemos duas vezes. Alguém deu a estas enormes extensões de
aparência nada campestre o nome técnico de Cintura Agrícola, e também, por
analogia poética, o de Cintura Verde, mas a única paisagem que os olhos conseguem
alcançar nos dois lados da estrada, cobrindo sem solução de continuidade perceptível
muitos milhares de hectares, são grandes armações de tecto plano, rectangulares,
feitas de plásticos de uma cor neutra que o tempo e as poeiras, aos poucos, foram
desviando ao cinzento e ao pardo. Debaixo delas, fora dos olhares de quem
passa, crescem plantas. Por caminhos secundários que vêm dar à estrada, saem,
aqui e além, camiões e tractores com atrelados carregados de vegetais, mas o
grosso do transporte já se efectuou durante a noite, estes de agora, ou têm
autorização expressa e excepcional para fazer a entrega mais tarde, ou
deixaram-se dormir. Marçal Gacho afastou discretamente a manga esquerda do
casaco para olhar o relógio, está preocupado porque o trânsito se torna pouco a
pouco mais denso e porque sabe que de aqui para diante, quando entrarem na Cintura
Industrial, as dificuldades aumentarão. O sogro deu pelo gesto, mas deixou-se
ficar calado, este seu genro é um moço simpático, sem dúvida, mas é nervoso, da
raça dos desassossegados de nascença, sempre inquieto com a passagem do tempo,
mesmo se o tem de sobra, caso em que nunca parece saber o que lhe há-de pôr
dentro, dentro do tempo, entenda-se, Como será quando chegar à minha idade,
pensou. Deixaram a Cintura Agrícola para trás, a estrada, agora mais suja,
atravessa a Cintura Industrial rompendo pelo meio de instalações fabris de
todos os tamanhos, actividades e feitios, com depósitos esféricos e cilíndricos
de combustível, estações eléctricas, redes de canalizações, condutas de ar,
pontes suspensas, tubos de todas as grossuras, uns vermelhos, outros pretos,
chaminés lançando para a atmosfera rolos de fumos tóxicos, gruas de longos
braços, laboratórios químicos, refinarias de petróleo, cheiros fétidos, amargos
ou adocicados, ruídos estridentes de brocas, zumbidos de serras mecânicas,
pancadas brutais de martelos de pilão, de vez em quando uma zona de silêncio,
ninguém sabe o que se estará produzindo ali. Foi então que Cipriano Algor
disse, Não te preocupes, chegaremos a tempo, Não estou preocupado, respondeu o genro,
disfarçando mal a inquietação, Bem sei, era uma maneira de falar, disse
Cipriano Algor. Fez virar a forgoneta para uma rua paralela reservada à
circulação local, Vamos atalhar caminho por aqui, disse, se a polícia nos
perguntar por que saímos da estrada, recorda-te da combinação, temos um assunto
a tratar numa destas fábricas antes de chegarmos à cidade. Marçal Gacho
respirou fundo, quando o tráfego se complicava na estrada, o sogro, mais tarde
ou mais cedo, acabava por tomar um desvio». In José Saramago, A Caverna, 2000, Editorial
Caminho, 2014, Porto Editora
, ISBN 978-972-004-654-3.
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