domingo, 7 de março de 2021

Os Cavaleiros de São João Baptista. Domingos Amaral. «… prove ao cliente que o dinheiro não desapareceu, dê por onde der. Sentira um arrepio na espinha. Recordou as perguntas da noite: não tem dúvidas morais?, perguntara Liliana»

 

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A Fundação. Sábado, 16 de Junho de 2002

«(…) Então, doutor João Pedro, tem o trabalho pronto na segunda-feira? A voz forte do Dr. Marcos Portugal soara atrás dele, assustando-o e interrompendo as suas recordações. Ao virar-se, quase entornou o whisky com gelo que o barman lhe estendia. Boa noite, disse atabalhoado. O olhar vivo e frio do dr. Marcos Portugal fixou-o, enquanto lhe apertava a mão com força. Quero o dossiê organizado sem falta na segunda. O tipo está feroz. Concordou, submisso. Tinha dúvidas sobre o trabalho, mas não era o momento oportuno para esclarecimentos. Venha, quero apresentar-lhe uma pessoa, comandou o dr. Marcos Portugal. João Pedro seguiu-o até à mesa, onde se sentava a bela mulher loira, esplendorosa no seu vestido vermelho.

Liliana, quero que conheças um dos nossos mais promissores investimentos... Foi assim que o dr. Marcos Portugal o apresentou: como se ele fosse uma acção, um título do Tesouro. Depois de beijar a diva loura, João Pedro sentou-se, observando a sala. Ecoavam os primeiros acordes de uma valsa e, como de costume, a noiva abandonou o seu lugar na mesa principal e foi à procura do seu pai, para abrir o baile. Depois de passar uns minutos gabando a sua última compra, um Mercedes fantástico, o dr. Marcos Portugal levantou-se: falamos na segunda, às oito e meia. João Pedro deixou-o afastar-se. Acendeu um cigarro. Na pista, a noiva dançava com o pai, o dr. Campos Neves, sócio de Marcos Portugal. Inês chamava-o com gestos e João Pedro começou a levantar-se, mas Liliana deteve-o, colocando-lhe um braço sobre o seu: gosta de trabalhar com ele? Olhou-a nos olhos. Que raio de pergunta era aquela? É intenso. Abrasivo, respondeu João Pedro, defensivo. Ela sorriu, enigmática. Depois, levou à boca o copo de vinho branco e sorveu um pouco. Voltou a sorrir e perguntou: nada de dúvidas morais? João Pedro deu uma passa no seu cigarro. O Danúbio Azul, habitual valsa de abertura nos casamentos, chegava ao clímax, e muitos pares de convidados avançavam para a pista, depois de o pai da noiva a ter passado para as mãos do seu recentíssimo marido. Sou advogado, não sou padre, respondeu. Liliana fez uma careta e brincou: parece tenso... É sempre assim na presença de mulheres bonitas?

Passou-lhe um pensamento pelo cérebro: só quando são as escort girls do meu patrão. Da sua mesa, Inês chamava-o, agitando os braços. Ou só fica tenso quando elas são as concubinas do seu patrão? João Pedro ficou siderado. Ela deu uma gargalhada: quase que se consegue ouvir o seu cérebro a trabalhar: o que é que ela quer? E se vai contar tudo ao boss? E se disser a palavra errada, a sua vida profissional vai pelo ralo, não é? João Pedro fez um sorriso forçado. Liliana acendeu um cigarro, inalou e depois comentou: as pessoas têm medo dele... Você também tem medo dele? O que era aquilo? Quem era esta mulher? Lionel Ritchie começou a cantar Ali Night Long e, na pista de dança, cresceu a excitação, como se as pessoas estivessem a viver o momento mais divertido das suas vidas. Medo? Porquê? Sem lhe ligar, Liliana levantou-se e depois baixou-se na direcção dele, de modo que as suas caras ficaram muito próximas: ora aí está um bom mistério para entreter os seus neurónios... João Pedro viu-a a afastar-se, abanando as ancas. Quem era esta mulher? Seria mesmo uma escort girl? Mas, pela forma como falava, dir-se-ia que conhecia a vida do escritório. Que tipo de jogo era aquele? Deixou-se ficar sentado, a digerir as dúvidas. Mariana continuava sem dar sinais de vida. Ainda pensou em perguntar ao pai por ela. Mas não era boa ideia: pai e filha não se davam bem.

Recordou o caso que tinha em mãos: uma operação de fuga ao fisco. A fortuna de um construtor civil posta a salvo. Vários milhões a voarem pelo ciberespaço, de off-shore em off-shore. E os nomes, estranhos, das empresas: Abraxas, Cifra Atbash, Leviktikon, Templer One, Agnus Mix, Salomon et al, Baph-Omet. Pareciam nomes históricos, religiosos, medievais. Lembrou-se das referências do professor Bernardino aos Templários e do murmúrio que ouvira sobre Marcos Portugal ser maçon, ou templário (quem comentara? O professor Bernardino?). Correu a tenda com olhar, procurando o historiador. No bar e nas mesas não existia sinal dele, nem da sua pequenina mulher. Na pista, onde uma turba desordenada imitava os movimentos corporais dos Village People e cantava o YMCA, também não descobriu o enorme viking. Arrependeu-se da forma abrupta como o abandonara, agora que tinha interesse em falar com ele. O seu pensamento regressou à operação fiscal. Fora montada há um ano, antes de João Pedro ser contratado. Só que a coisa complicara-se: o cliente acusava agora o escritório de o ter prejudicado seriamente. À primeira vista, Parecia grave. O dr. Marcos Portugal dera-lhe ordens precisas: prove ao cliente que o dinheiro não desapareceu, dê por onde der. Sentira um arrepio na espinha. Recordou as perguntas da noite: não tem dúvidas morais?, perguntara Liliana». In Domingos Amaral, Os Cavaleiros de São João Baptista, 2004, Leya, BIS, 2015, ISBN 978-989-660-373-1.

Cortesia de Leya/BIS/JDACT

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