Fazenda Bela Aliança. Março de 1893
«Deslizo
num abismo. Uma boca invisível aspira minhas últimas forças. Sinto que afogo,
mas dizem que sofro por nada. Que não há causa específica para minha dor,
quando desfilam horríveis imagens na sonolência das primeiras horas da manhã.
Engano. Vivo um sofrimento lancinante, e não é físico. Sofrimento sem natureza ou
causa conhecida. É a neurastenia, estrada nocturna e sem fim. Estrada sem ponto
de chegada e solitária. Morro de dor, coberta de manchas azuis que marcam meus
braços. São as manchas de melancolia. Bebo um resto de vida sem sede. Na mesa
dos santos, toalha branca e velas de cera pura. Preferia que abrissem a janela.
Sufoco. Há um cheiro de urina disfarçado pelo vaso de jasmins. Não me controlo
mais. Ouço as portas que se fecham. Vultos circulam à volta da cama. Alguém diz
que ainda estou formosa, que até parece que vou levantar. Porém, cochichos
anunciam a minha morte. As serpentinas e as mangas de vidro cintilam. Maurice e
os outros insistirão em me esquecer? Caso se recusem a se lembrar, me tornarei
mais cruel e mais presente. Continuarei viva no meu túmulo. Irei comunicar por aparições
ou sinais exteriores. Assombrarei Maurice.
Digo isso porque estou morrendo.
Devo aceitar meu destino. Nada de emoções excessivas. Meus cabelos: estarão
penteados? Alguém murmura no meu ouvido: trouxe a fita benta. Um pedaço de
cetim não irá me arrancar da agonia. Outro me pede para levar um recado ao irmão
falecido. Quase vejo a Dama de Branco. Atrás dela, meus pais. Outra voz puxa o
Creio em Deus Pai e a Oração dos Agonizantes. Rezam alto e baralhadamente.
Toque de sineta. É o padre, meu
tio. O barulho que vem junto é de criados e ex-escravos da fazenda, orando. Uma
onda de sons ininteligíveis acaba na minha cama. Trajados de preto, vizinhos e amigos
enchem o quarto. Imobilizada, lembro que me esqueci de dizer quantas missas
quero por minha alma ou onde desejo ser enterrada. As janelas vão se cobrir de
reposteiros em veludo com franjas douradas. Regina Angelorum vai ajudar a
pendurá-las. Um negro já deve ter ido buscar folhas de canela, cravo e
laranjeira, para estendê-las na entrada da casa. Outro irá distribuir as
cartas-convite para o funeral. Quando sair meu caixão num coche de cavalos com
plumas escuras na cabeça, os criados irão apagar os rastos da morte. Minha
camisola e roupa de cama serão doadas ou queimadas. A casa será varrida com especial
cuidado de empurrar a poeira pela porta da frente, que ficará semicerrada,
impedindo o retorno da minha alma. No quintal, jogarão fora a água do último
banho e enterrarão meu cabelo e unhas cortadas em lugar previamente escolhido
por tia Maria Gata. As pistas serão embaralhadas para que eu não volte. Para
que eu veja que não há mais lugar para mim. Depois que eu fechar os olhos, meu
nome deixará de ser pronunciado. Guiada por São Miguel, aspirada pela lua,
minha alma há de passar à Via Láctea. Na cidade de Piraí, as badaladas da
agonia hão-de cair da torre, pedindo orações. Os passantes hão-de se descobrir,
ajoelhar e bater no peito.
Sinto que o movimento à volta de
minha cama cessou. Uma falsa calma encarna na voz que tenta me confortar: pede
a Nosso Senhor Jesus Cristo que perdoe teus pecados, tome posse de tua alma e a
limpe com o preciosíssimo sangue que por ela derramou. Nada tenho a confessar.
Maurice diz que sou uma santa. Serei uma alma bendita cercada por luz azulada e
clara. Quero ser enterrada com os sapatos de laço franceses. Não! A tradição
exige enterro sem ornatos. O luxo deve desaparecer, pois não se penetra assim a
bem-aventurança. Melhor amortalhada no hábito de Nossa Senhora do Carmo, com
touca e peitoral de opala branca». In Mary del Priore, Beije-me onde o Sol não
Alcança, 2015, Editora Planeta, 2015, ISBN 978-854-220-588-6.
Cortesia de EPlaneta/JDACT
JDACT, Mary del Priore, Literatura, Narrativa,