Toccata
«(…) O dr. Korherr, que compilava
estatísticas para o Reichsführer-SS Heinrich Himmler, chegou a pouco menos de
dois milhões em 31 de Dezembro de 1942, mas reconhecia, quando pude discutir
com ele em 1943, que seus números de partida eram pouco confiáveis. Enfim, o
respeitabilíssimo professor Hilberg, especialista na questão e que dificilmente
teria pontos de vista sectários, pró-alemães pelo menos, chega, ao fim de uma
demonstração cerrada de dezanove páginas, à cifra de 5.100.000, o que
corresponde grosso modo à opinião do finado Obersturmbannführer Eichmann.
Aceitemos então os números do professor Hilberg.
Agora, a matemática. O conflito
com a URSS durou das três horas da manhã de 22 de Junho de 1941 até, oficialmente,
as 23h01 de 8 de Maio de 1945, o que perfaz rês anos, dez meses, dezasseis
dias, vinte horas e um minuto, ou seja, arredondando, 46,5 meses, 202,42
semanas, 1.417 dias, 34.004 horas, ou 2.040.241 minutos (contando o minuto
suplementar). Para o programa dito da Solução Final, ficaremos com as mesmas
datas; antes, nada fora decidido nem sistematizado, as perdas judaicas são fortuitas.
Associemos agora um conjunto de cifras ao outro: para os alemães, isso dá 64.516
mortos por mês, ou seja, 14.821 mortos por semana, ou 2.117 mortos por dia, ou
88 mortos por hora, ou 1,47 morto por minuto, isto em média para cada minuto de
cada hora de cada dia de cada semana de cada mês de cada ano, tudo durando três
anos, dez meses, dezasseis dias, vinte horas e um minuto. Para os judeus,
incluindo soviéticos, temos cerca de 109.677 mortos por mês, ou seja, 25.195
mortos por semana, ou 3.599 mortos por dia, ou 150 mortos por hora, ou 2,5
mortos por minuto para um período idêntico. No lado soviético, finalmente, isso
nos dá uns 430.108 mortos por mês, 98.804 mortos por semana, 14.114 mortos por
dia, 588 mortos por hora, ou 9,8 mortos por minuto, período idêntico. Ou seja,
para o total global no meu campo de actividade, médias de 572.043 mortos por mês,
131.410 mortos por semana, 18.772 mortos por dia, 782 mortos por hora e 13,04
mortos por minuto, todos os minutos de todas as horas de todos os dias de todas
as semanas de todos os meses de cada ano do período dado, ou seja, para
memorizar, três anos, dez meses, dezasseis dias, vinte horas e um minuto. Que
os que zombaram desse minuto suplementar de facto um pouco pedante considerem
que isso dá assim mesmo 13,04 mortos a mais, em média, e, se forem capazes,
imaginem treze pessoas de seu círculo mortas num minuto. Podemos também efectuar
um cálculo definindo o intervalo de tempo entre cada morte: isso nos dá em média
um morto alemão a cada 40,8 segundos, um morto judeu a cada 24 segundos e um
morto bolchevique (incluindo os judeus soviéticos) a cada 6,12 segundos, ou
seja, isso para o conjunto do mencionado período. Agora vocês estão em condições
de efectuar, a partir desses números, exercícios concretos de imaginação.
Peguem por exemplo um relógio e contem um morto, dois mortos, três mortos etc.
a cada 4,6 segundos (ou a cada 6,12 segundos, a cada 24 segundos ou a cada 40,8
segundos, se tiverem uma preferência definida), tentando imaginar, como se
estivessem à sua frente, alinhados, estes um, dois, três mortos. Vocês verão, é
um bom exercício de meditação.
Ou peguem outra catástrofe, mais
recente, que os tenha afectado intensamente, e façam a comparação. Por exemplo,
se forem franceses, considerem a pequena aventura argelina, que tanto
traumatizou seus concidadãos. Vocês perderam ali 25.000 homens em sete anos,
incluindo os acidentes: o equivalente a pouco menos de um dia e treze horas de mortos
na frente do Leste; ou cerca de sete dias de mortos judeus. Não estou contabilizando,
evidentemente, os mortos argelinos: como vocês não tocam no assunto, digamos,
nunca em seus livros e programas, eles não devem significar muito para vocês. Entretanto
vocês mataram dez para cada um de seus próprios mortos, esforço respeitável mesmo
comparado ao nosso. Paro por aqui, poderíamos continuar por muito tempo; convido-os
a prosseguirem sozinhos, até que o chão se abra sob seus pés. Quanto a mim, não
preciso de nada disso: há muito tempo o pensamento da morte está mais próximo
de mim que a veia do meu pescoço, como diz essa belíssima frase do Corão. Se um
dia vocês conseguissem me fazer chorar, minhas lágrimas desfigurariam seu
rosto. A conclusão de tudo isso, se me permitem outra citação, a última,
prometo, é, como dizia muito bem Sófocles: o que se deve preferir a tudo é não
ter nascido. Schopenhauer, por sinal, escrevia claramente a mesma coisa:
Seria melhor que não existisse nada. Como há mais sofrimento que prazer sobre a
terra, toda satisfação é apenas transitória, criando novos desejos e novas aflições,
e a agonia do animal devorado é maior que o prazer do devorador. Sim, eu
sei, isso dá duas citações, mas a ideia é a mesma: na verdade, vivemos no pior
mundo possível. Tudo bem, a guerra terminou. E depois aprendemos a lição, não
vai acontecer mais. Mas vocês estão mesmo seguros de terem aprendido a lição? Têm
certeza de que não acontecerá de novo? Têm mesmo certeza de que a guerra
terminou? De certa maneira, a guerra nunca terminou, ou então só terminará
quando a última criança nascida no último dia de combate for enterrada sã e salva,
e mesmo assim ela continuará, em seus filhos e depois nos deles, até que
finalmente a herança se dilua um pouco, as recordações sejam desfiadas, e a
dor, amenizada, ainda que nesse momento todos já tenham há muito esquecido e
tudo esteja relegado ao lote das histórias de antigamente, boas sequer para
assustar as crianças, e ainda menos os filhos dos mortos e daqueles que
houverem desejado sê-lo, mortos, esclareço.
[…]
Tínhamos lançado uma ponte flutuante na fronteira. Bem ao lado, esparramadas nas águas cinzentas do Bug, ainda vinham à tona vigas retorcidas da ponte metálica dinamitada pelos soviéticos. Nossos batedores haviam montado a nova numa noite, diziam, e Feldgendarmes impassíveis, cujas placas em meia-lua irradiavam fagulhas de sol, organizavam a circulação com desenvoltura, como se ainda estivessem em casa; disseram-nos para esperar. Contemplei o grande rio preguiçoso, os pequenos bosques tranquilos do outro lado, a multidão na ponte. Depois foi a nossa vez de passar, e logo em seguida começava uma espécie de avenida de carcaças de material russo, caminhões queimados e amassados, tanques rasgados como latas de conserva, trens de artilharia enrugados como fetos, derrubados, varridos, misturados numa interminável faixa calcinada de pilhas irregulares ao longo dos acostamentos. Mais além, bosques resplandeciam sob a luz esplêndida do Outono». In Jonathan Littell, As Benevolentes, 2006, Publicações Dom Quixote, Alfragide, 2014, ISBN 978-972-203-304-6.
Cortesia PdomQuixote/JDACT
Conhecimentos, II Guerra Mundial, JDACT, Jonathan Littell, Memória Viva, Mulher,