«(…) Reparem, minhas senhoras e meus senhores, nesta espécie de ponte longitudinal composta de fibras: chama-se fórnice e constitui a parte superior do tálamo óptico. Por trás dela, vêem-se duas comissuras transversais que obviamente não devem ser confundidas com as dos lábios. Observemos agora do outro lado. Atenção. Isto que sobressai aqui são os tubérculos quadrigémeos ou lobos ópticos (não sendo aula de zoologia, a acentuação nos lobos faz-se forte no primeiro o). Esta parte ampla é o cérebro anterior, e aqui temos as célebres circunvuloções. Neste sítio, em baixo, está, evidentemente, toda a gente o sabe, o cerebelo, com a sua parte interna, chamada arbor vitae, que se deve, convém esclarecer, não vá julgar-se que estamos na aula de botânica, à plicatura do tecido nervoso num certo número de lamelas que dão origem, por sua vez, a pregas secundárias. Já falámos da medula espinhal. Repare-se nisto que não é uma ponte, mas que tem o nome de ponte de Varólio, que parece mesmo uma cidade da Itália, ora digam lá que não. Atrás está a medula alongada. Falta pouco para chegarmos ao fim da descrição, não se enervem. A explicação poderia ser, naturalmente, muito mais demorada e minuciosa, mas para isso só na autópsia. Limitemo-nos portanto a indicar a glândula pituitária, que é um corpo glandular e nervoso que nasce do pavimento do tálamo ou terceiro ventrículo. E, enfim, concluindo, informamos que esta coisa aqui é o nervo óptico, questão da mais alta importância, pois com isto ninguém ousará dizer que não viu o que neste lugar se passou. E agora, a pergunta fundamental: para que serve o cérebro, vulgo miolos? Serve para tudo porque serve para pensar. Mas, atenção, não vamos nós cair agora na superstição comum de que tudo quanto enche o crânio está relacionado com o pensamento e os sentidos. Imperdoável engano, senhoras e senhores. A maior parte desta massa contida no crânio não tem nada que ver com o pensamento, não risca nada para aí. Só uma casca muito fina de substância nervosa, chamada córtice, com cerca de três milímetros de espessura, e que cobre a parte anterior do cérebro, constitui o órgão da consciência. Repare-se, por favor, na perturbadora semelhança que há entre o que chamaremos um microcosmo e o que chamaremos um macrocosmo, entre os três milímetros de córtice que nos permitem pensar e os poucos quilómetros de atmosfera que nos permitem respirar, insignificantes uns e outros e todos, por sua vez, em comparação nem sequer com o tamanho da galáxia, mas com o simples diâmetro da terra. Pasmemos, irmãos, e oremos ao Senhor.
O corpo ainda aqui está, e
estaria por todo o tempo que quiséssemos. Aqui, na cabeça, neste sítio onde o
cabelo aparece despenteado, é que foi a pancada. À vista, não tem importância. Uma
ligeiríssima equimose, como de unha impaciente, que a raiz do cabelo quase
esconde, não parece que por aqui a morte possa entrar. Em verdade, já lá está
dentro. Que é isto? Iremos nós apiedar-nos do inimigo vencido? É a morte uma
desculpa, um perdão, uma esponja, uma lixívia para lavar crimes? O velho abriu
agora os olhos e não consegue reconhecer-nos, o que só a ele espanta, mas a nós
não, que nos não conhece. Treme-lhe o queixo, quer falar, inquieta-se como ali
chegámos, julga-nos autores do atentado. Nada dirá. Pelo canto da boca
entreaberta corre-lhe para o queixo um fio de saliva. Que faria a irmã Lúcia
neste caso, que faria se aqui estivesse, de joelhos, envolta no seu triplo cheiro
de bafio, saias e incenso? Enxugaria reverente a saliva, ou, mais reverente
ainda, se inclinaria toda para diante, prosternada, e com a língua apararia a
santa secreção, a relíquia, para guardar numa ampola? Não o dirá a história
sacra, não o dirá, sabemos, a profana, nem Eva doméstica reparará, coração
aflito, na injúria que o velho pratica. Embargo babando sobre o velho.
Já se ouvem passos no corredor,
mas temos ainda tempo. A equimose tornou-se mais escura e o cabelo parece arrepiado
sobre ela. Uma passagem carinhosa de pente poderia compôr tudo nesta superfície
que vemos. Mas seria inútil. Sobre outra superfície, a do córtice, acumula-se o
sangue derramado pelos vasos que a pancada seccionou naquele ponto preciso da
queda. É o hematoma.
É lá que neste momento se
encontra o Anobium, preparado para o segundo turno. Buck Jones limpou o revólver
e mete novas balas no tambor. Já aí vêm buscar o velho. Aquele raspar de unhas,
aquele choro, é das hienas, não há ninguém que não saiba. Vamos até à janela.
Que me diz a este mês de Setembro? Há muito tempo que não tínhamos um tempo assim.
Embargo
Acordou com a sensação aguda de
um sonho degolado e viu diante de si a chapa cinzenta e gelada da vidraça, o
olho esquadrado da madrugada que entrava, lívido, cortado em cruz e escorrente
de transpiração condensada. Pensou que a mulher se esquecera de correr o
cortinado ao deitar-se, e aborreceu-se: se não conseguisse voltar a adormecer já,
acabaria por ter o dia estragado. Faltou-lhe porém o ânimo para levantar-se,
para tapar a janela: preferiu cobrir a cara com o lençol e virar-se para a
mulher que dormia, refugiar-se no calor dela e no cheiro dos seus cabelos
libertos. Esteve ainda uns minutos à espera, inquieto, a temer a espertina
matinal. Mas depois acudiu-lhe a ideia do casulo morno que era a cama e a
presença labiríntica do corpo a que se encostava, e, quase a deslizar num círculo
lento de imagens sensuais, tornou a cair no sono. O olho cinzento da vidraça
foi-se azulando aos poucos, fitando fixo as duas cabeças pousadas na cama, como
restos esquecidos de uma mudança para outra casa ou para outro mundo. Quando o
despertador tocou, passadas duas horas, o quarto estava claro». In
José Saramago, Objecto Quase, 1978, Porto Editora, 2015, ISBN
978-972-004-655-0.
Cortesia de PortoE/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Política, Cultura, Nobel, MLCT,