quarta-feira, 17 de março de 2021

José Saramago. Objecto Quase. «Sobre outra superfície, a do córtice, acumula-se o sangue derramado pelos vasos que a pancada seccionou naquele ponto preciso da queda. É o hematoma»

jdact

«(…) Reparem, minhas senhoras e meus senhores, nesta espécie de ponte longitudinal composta de fibras: chama-se fórnice e constitui a parte superior do tálamo óptico. Por trás dela, vêem-se duas comissuras transversais que obviamente não devem ser confundidas com as dos lábios. Observemos agora do outro lado. Atenção. Isto que sobressai aqui são os tubérculos quadrigémeos ou lobos ópticos (não sendo aula de zoologia, a acentuação nos lobos faz-se forte no primeiro o). Esta parte ampla é o cérebro anterior, e aqui temos as célebres circunvuloções. Neste sítio, em baixo, está, evidentemente, toda a gente o sabe, o cerebelo, com a sua parte interna, chamada arbor vitae, que se deve, convém esclarecer, não vá julgar-se que estamos na aula de botânica, à plicatura do tecido nervoso num certo número de lamelas que dão origem, por sua vez, a pregas secundárias. Já falámos da medula espinhal. Repare-se nisto que não é uma ponte, mas que tem o nome de ponte de Varólio, que parece mesmo uma cidade da Itália, ora digam lá que não. Atrás está a medula alongada. Falta pouco para chegarmos ao fim da descrição, não se enervem. A explicação poderia ser, naturalmente, muito mais demorada e minuciosa, mas para isso só na autópsia. Limitemo-nos portanto a indicar a glândula pituitária, que é um corpo glandular e nervoso que nasce do pavimento do tálamo ou terceiro ventrículo. E, enfim, concluindo, informamos que esta coisa aqui é o nervo óptico, questão da mais alta importância, pois com isto ninguém ousará dizer que não viu o que neste lugar se passou. E agora, a pergunta fundamental: para que serve o cérebro, vulgo miolos? Serve para tudo porque serve para pensar. Mas, atenção, não vamos nós cair agora na superstição comum de que tudo quanto enche o crânio está relacionado com o pensamento e os sentidos. Imperdoável engano, senhoras e senhores. A maior parte desta massa contida no crânio não tem nada que ver com o pensamento, não risca nada para aí. Só uma casca muito fina de substância nervosa, chamada córtice, com cerca de três milímetros de espessura, e que cobre a parte anterior do cérebro, constitui o órgão da consciência. Repare-se, por favor, na perturbadora semelhança que há entre o que chamaremos um microcosmo e o que chamaremos um macrocosmo, entre os três milímetros de córtice que nos permitem pensar e os poucos quilómetros de atmosfera que nos permitem respirar, insignificantes uns e outros e todos, por sua vez, em comparação nem sequer com o tamanho da galáxia, mas com o simples diâmetro da terra. Pasmemos, irmãos, e oremos ao Senhor.

O corpo ainda aqui está, e estaria por todo o tempo que quiséssemos. Aqui, na cabeça, neste sítio onde o cabelo aparece despenteado, é que foi a pancada. À vista, não tem importância. Uma ligeiríssima equimose, como de unha impaciente, que a raiz do cabelo quase esconde, não parece que por aqui a morte possa entrar. Em verdade, já lá está dentro. Que é isto? Iremos nós apiedar-nos do inimigo vencido? É a morte uma desculpa, um perdão, uma esponja, uma lixívia para lavar crimes? O velho abriu agora os olhos e não consegue reconhecer-nos, o que só a ele espanta, mas a nós não, que nos não conhece. Treme-lhe o queixo, quer falar, inquieta-se como ali chegámos, julga-nos autores do atentado. Nada dirá. Pelo canto da boca entreaberta corre-lhe para o queixo um fio de saliva. Que faria a irmã Lúcia neste caso, que faria se aqui estivesse, de joelhos, envolta no seu triplo cheiro de bafio, saias e incenso? Enxugaria reverente a saliva, ou, mais reverente ainda, se inclinaria toda para diante, prosternada, e com a língua apararia a santa secreção, a relíquia, para guardar numa ampola? Não o dirá a história sacra, não o dirá, sabemos, a profana, nem Eva doméstica reparará, coração aflito, na injúria que o velho pratica. Embargo babando sobre o velho.

Já se ouvem passos no corredor, mas temos ainda tempo. A equimose tornou-se mais escura e o cabelo parece arrepiado sobre ela. Uma passagem carinhosa de pente poderia compôr tudo nesta superfície que vemos. Mas seria inútil. Sobre outra superfície, a do córtice, acumula-se o sangue derramado pelos vasos que a pancada seccionou naquele ponto preciso da queda. É o hematoma.

É lá que neste momento se encontra o Anobium, preparado para o segundo turno. Buck Jones limpou o revólver e mete novas balas no tambor. Já aí vêm buscar o velho. Aquele raspar de unhas, aquele choro, é das hienas, não há ninguém que não saiba. Vamos até à janela. Que me diz a este mês de Setembro? Há muito tempo que não tínhamos um tempo assim.

Embargo

Acordou com a sensação aguda de um sonho degolado e viu diante de si a chapa cinzenta e gelada da vidraça, o olho esquadrado da madrugada que entrava, lívido, cortado em cruz e escorrente de transpiração condensada. Pensou que a mulher se esquecera de correr o cortinado ao deitar-se, e aborreceu-se: se não conseguisse voltar a adormecer já, acabaria por ter o dia estragado. Faltou-lhe porém o ânimo para levantar-se, para tapar a janela: preferiu cobrir a cara com o lençol e virar-se para a mulher que dormia, refugiar-se no calor dela e no cheiro dos seus cabelos libertos. Esteve ainda uns minutos à espera, inquieto, a temer a espertina matinal. Mas depois acudiu-lhe a ideia do casulo morno que era a cama e a presença labiríntica do corpo a que se encostava, e, quase a deslizar num círculo lento de imagens sensuais, tornou a cair no sono. O olho cinzento da vidraça foi-se azulando aos poucos, fitando fixo as duas cabeças pousadas na cama, como restos esquecidos de uma mudança para outra casa ou para outro mundo. Quando o despertador tocou, passadas duas horas, o quarto estava claro». In José Saramago, Objecto Quase, 1978, Porto Editora, 2015, ISBN 978-972-004-655-0.

Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, José Saramago, Literatura, Política, Cultura, Nobel, MLCT,