O Estranho Desejo do Homem Estranho
«(…) Esta descoberta fez-se quase
à força, porque Mertoun nunca estava disposto a falar de lugares-comuns nem dos
seus próprios assuntos. Mas era, por vezes, arrastado a discussões que faziam
reconhecer nele, quase sem ele dar por isso, o sábio e o homem de sociedade.
Outras vezes, como reflexo da hospitalidade que recebia, ele parecia fazer um
esforço sobre si próprio para entrar em conversação com os que o cercavam,
sobretudo se a conversa era de tom grave, melancólico e satírico, o que melhor
convinha à feição do seu espírito. Em todo o caso, a opinião geral dos
setlandeses era de que ele devia ter recebido uma excelente educação, mas
descurada num ponto muito importante, pois o senhor Mertoun mal sabia
distinguir a proa de um barco da sua popa, e uma vaca não poderia ser mais
ignorante em tudo o que se relacionasse com a condução de um navio. Tinham pena
de que uma ignorância tão crassa da arte mais necessária à vida (pelo menos nas
ilhas Setland) estivesse ligada aos largos conhecimentos que ele evidenciava em
tantos outros assuntos. No entanto, essa era a verdade.
Excepto quando conseguiam fazê-lo
sair da sua reserva pela maneira que citámos, o senhor Basil Mertoun
mantinha-se sombrio e concentrado. As mulheres gostam sempre de penetrar os
mistérios e de suavizar a melancolia, sobretudo quando se trata de um homem desempenado
e que ainda não ultrapassou a boa idade da vida. É, portanto, possível que
entre as filhas de Tule, de cabelos louros e olhos azuis, este estrangeiro
pensativo tivesse encontrado alguma que se encarregasse de o confortar, se ele
mostrasse alguma disposição para receber esse caridoso serviço; mas, bem longe
de proceder assim, ele até parecia fugir da presença daquele sexo ao qual
recorremos em todas as nossas aflições de corpo e de espírito, para obter
piedade e consolação. A estas singularidades, juntava o senhor Mertoun uma
outra particularidade desagradável ao seu hospedeiro Magnus Troil. Este magnate
das ilhas Setland, que, como já dissemos, descendia, pelo lado de seu pai, de
uma antiga família norueguesa, devido ao casamento de um dos seus avoengos com
uma dama dinamarquesa, estava profundamente convencido de que um copo de
genebra ou de aguardente eram uma panaceia infalível contra todas as
preocupações e todas as aflições do Mundo. O senhor Mertoun nunca recorrera a
este remédio; não bebia senão água, água pura, e não havia súplicas que o decidissem
a provar outra bebida que não proviesse de uma límpida fonte. Ora, era o que
Magnus Troil não podia tolerar; era ultrajar as antigas leis de sociabilidade
do Norte, que ele, por seu lado, sempre respeitava tão rigorosamente. E, embora
Magnus Troil tivesse o costume de afirmar que nunca se deitara embriagado, o
que não era verdade senão no sentido que ele emprestava à palavra, seria
impossível provar que alguma vez tivesse recolhido ao leito no uso pleno e
livre do seu juízo. Perguntar-se-á em que poderia o convívio deste estrangeiro
compensar Magnus do desprazer que lhe causavam os seus hábitos de sobriedade.
Primeiro, ele tinha aquele ar de importância que denuncia um homem de alguma
consideração, e pobre. Tinha, aliás, algum talento de conversação, quando se
dignava fazer uso dele, como já o demos
a entender; e a sua misantropia, ou aversão pelos assuntos e relações sociais,
exprimiam-se por vezes de maneira a passar por pessoa espirituosa, num local
onde o espírito era raro. Acima de tudo, a história do senhor Mertoun parecia
impenetrável, e a sua presença tinha todo o interesse de um enigma, que se
gosta de ler e reler precisamente porque não se consegue adivinhar nem uma
palavra.
Apesar de todas estas
particularidades favoráveis, Mertourn diferia do seu hospedeiro em pontos tão
essenciais, que depois de ele ter passado algum tempo na sua casa, Magnus Troil
ficou agradavelmente surpreendido quando, uma noite, depois de permanecerem
juntos durante duas horas em silêncio absoluto, a beber aguardente e água, isto
é, Magnus o álcool e Mertoun o líquido puro, Mertoun pediu ao seu hóspede licença
para ocupar, como locatário, a sua casa abandonada de Jarlshof, no extremo do
território denominado Dunrossness, e situado no promontório Sumburgh. Vou
desembaraçar-me dele da maneira mais correcta, pensou Magnus. A sua partida
vai, no entanto, arruinar-me em limões, porque bastava um dos seus olhares para
dar acidez a um oceano de punch. No entanto, o generoso e bom setlandês
opôs desinteressadamente objecções a Mertoun sobre a solidão a que ia condenar-se
e acerca dos inconvenientes que devia esperar. Apenas se encontram nessa velha
cas, disse ele, os móveis indispensáveis. Não há convivência em várias milhas em
redor. Não encontrará outras provisões senão sillocks (pequenos peixes próprios daquelas paragens)
salgados, e não terá por companhia mais do que gaivotas e outras aves marinhas.
Meu bom amigo, respondeu Mertoun, se quisesse fazer-me preferir esse local a
outro, não andaria melhor do que assegurando-me que lá estaria longe do convívio
dos homens e que o luxo não poderia lá penetrar. Um reduto onde a minha cabeça
e a do meu filho possam estar ao abrigo das intempéries é tudo o que desejo.
Fixe a renda que lhe devo pagar, senhor Troil, e permita-me que seja seu locatário
em Jarlshof. A renda!, exclamou o setlandês. Não pode ser muito avultada por
uma velha casa que ninguém habita desde a morte de minha mãe, que Deus tenha em
descanso. Quanto a um abrigo, as velhas paredes são grossas, e podem ainda
aguentar muito pé de vento. Mas, em nome do céu, senhor Mertoun, pense no que
vai fazer. Um homem nascido entre nós que quisesse ir estabelecer-se em
Jarlshof faria um projecto extravagante, com mais forte razão o senhor, que
nasceu noutro país, quer seja a Inglaterra, a Escócia ou a Irlanda, é o que
ninguém sabe dizer...» In Walter Scott, O Pirata, 1822, tradução de
Mário Domingues, 2ª edição, Edição Romano Torres, Lisboa, 1953-1956, Obras
Escolhidas de Autores Escolhidos, nº 21.
Cortesia de ERomanoTorres/JDACT
JDACT, Walter Scott, Literatura, Século XIX, Cultura, A Arte,