Da violência ao culto. Espiritualidade devocional da Ordem de Cristo (1462-1536)
«A
Ordem de Cristo, desde a sua fundação no século XIV, reflectiu uma espiritualidade
devocional que incluía o culto dos santos guerreiros e mártires, reflexo da sua
matriz religiosa e militar, herdada já dos Templários. As fontes utilizadas
para este estudo são os registos de visitações feitos às igrejas da Ordem de Cristo,
entre 1462 e 1536. Através destes apontamentos, é possível reconstituir os santos
venerados nas igrejas e ermidas, bem como nas capelas e nos altares no interior
desses templos, em cerca de meia centena de localidades. Os santos guerreiros e
mártires são particularmente cultuados em lugares associados à sede conventual
e à defesa da fronteira, tanto muçulmana como castelhana». In Resumo
Da violência ao culto. Espiritualidade devocional da Ordem de Cristo (1462-1536)
A violência como elemento definidor
«A Ordem de Cristo é uma Ordem
Militar com a singularidade de ter sido criada apenas no século XIV, mais
concretamente em 1319. O contexto histórico imediato desta criação é a
supressão da Ordem do Templo em 1312. Numa leitura mais ampla, porém,
conseguem-se identificar causas que não se ligam exclusivamente à vontade de
perpetuar a herança matricial dos Templários. A própria bula fundacional da
Ordem de Cristo aponta para um programa de acção ligado à ideologia da cruzada
tardia e à sua aplicação à área do estreito de Gibraltar, onde a pirataria e o
corso convidavam à participação activa de Portugal. Assim, percebe-se que os
interesses económicos não sejam os únicos subjacentes a esta opção e que
emerjam, em simultâneo, objectivos no domínio político, religioso e cultural
que se reflectem na evolução histórica da Ordem de Cristo. O seu quadro
devocional não é imune a estas questões.
Desde a formulação da sua matriz
conceptual no século XII, as Ordens Militares foram associadas à concretização
da guerra santa sobretudo em zonas periféricas do espaço europeu, desde o
Oriente Latino, à Península Ibérica Pimenta, e ao Báltico. A assunção da
violência como elemento definidor de uma matriz espiritual reforça a novidade
das Ordens Religioso-Militares e faz delas instituições de grande utilidade
sociopolítica na cronologia em questão. Nos moldes definidos, a actuação
militar foi incorporada como factor de distinção programática destas
instituições face a outras Ordens Religiosas, como as Monásticas, e como factor
de salvação dos freires que nelas professavam. Favorecida por esta conjuntura,
a violência é incorporada na teologia cristã e legitimada como factor de
pacificação, sem que isto encerrasse forçosamente um paradoxo. Ou seja,
sobretudo, no quadro da história dos territórios do Oriente Latino e da
Península Ibérica, a violência era canalizada para a conquista de novos espaços,
que gradualmente se convertiam em territórios organizados e com traços de
tendente estruturação estatal.
Tendo em consideração estas
circunstâncias, importa perceber o modo como a Ordem de Cristo manifestava esta
religiosidade guerreira nos seus templos e como a transpunha para o nível
devocional. Uma leitura restrita sobre os santos directamente relacionados com
a actividade guerreira inclui como os mais representativos S. Sebastião,
Santiago, S. Miguel e S. Jorge. A avaliação da expressão deste grupo
hagiográfico entre a Ordem de Cristo é potenciada pela inclusão de outros
elementos marcantes de uma sociedade em que a guerra fazia parte da sua imagem
de marca e modelava comportamentos. A alusão frequente a santos que tinham
conhecido o martírio como forma de punição, e em simultâneo de salvação, pode
constituir um elemento de reflexão interessante no quadro da teologia da violência,
típica do mundo medieval em que nos centramos. A própria realidade histórica da
Península Ibérica, em que a reconquista foi tida como o motor fulcral, coloca
em evidência a necessidade de estudos do perfil do que agora desenvolvemos.
No ocidente peninsular, em
paralelo com o desenvolvimento da reconquista, ocorreu a valorização de
Santiago de Compostela enquanto grande centro devocional. A lenda de Santiago é
repleta de significados e reconhece ao santo vários atributos e representações.
No contexto histórico em que nos situamos, a de Santiago Mata-Mouros é a mais
emblemática. Trata-se, de facto, de uma síntese entre a violência e o culto,
adaptada ao contexto histórico peninsular de modo particular». In Paula
P. Costa e Joana Lencart, Da violência ao culto: santos guerreiros e mártires
na espiritualidade devocional da Ordem de Cristo (1462-1536), Roda da Fortuna. Revista Eletrónica sobre Antiguidade e
Medievo, 2019, Volume 8, Número 1, ISSN: 2014-7430.
Cortesia de Roda da Fortuna/ Revista Eletrónica sobre Antiguidade e Medievo/JDACT
JDACT, Paula Pinto Costa, Joana Lencart, Cultura e Conhecimento,