1126
Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126
«(…) Naturalmente, o seu profundo
temor era que Afonso Henriques se apaixonasse por outra. Naquela época, quando
a revimos, Chamoa Gomes já tinha dezasseis anos e a irmã Maria Gomes, a minha
Maria, que, reconheço, não era tão deslumbrante, tinha dezassete. Na corte do
Condado Portucalense, as sobrinhas do Trava eram muito pretendidas e havia até
quem dissesse que uma delas poderia casar com Afonso Henriques, embora nós
duvidássemos, pois o príncipe desprezava o amante da mãe e a sua poderosa família
galega. À cautela, logo que as soubera em Viseu, a prima Raimunda decidira
vigiar-lhes os passos. Porém, as manas Gomes haviam permanecido dentro de casa,
e só naquele momento, em que via finalmente Chamoa, tão radiosa e sedutora, a prima
Raimunda sofria.
A rapariga galega era uma
poderosa rival, a maior até à data. A sua chegada representava um perigo fatal
para aquele encantamento escondido e talvez impossível de Raimunda. Ela e todos
nós sabíamos que o príncipe já dormira com soldadeiras, mas que não se afeiçoava
a elas. Já uma galeguinha doce, risonha e sardenta como Chamoa entraria pelo
coração do seu amado como faca quente em manteiga. Jumenta, pensava sempre a
minha pobre prima. De repente, viu um rapaz jovial, um pouco mais velho do que
Chamoa, apertado no seu balandrau demasiado justo, aparecer no pátio e
dizer-lhe: Chamoa, tendes de vir comigo ao ribeiro da Loba, vamos a cavalo! A
rapariga riu-se, aos pulinhos, mas recusou a sugestão: primo, hoje é
Sexta-Feira Santa, é pecado pensar nisso!
A família de Toronho havia
chegado a Viseu vinda da Galiza, numa pequena comitiva que à prima hora da manhã
entrara pelas portas da cidade. Quanto ao seu companheiro de colóquio, era
familiar dela pelo lado dos Trava, e não muito distante. Chamava-se Mem
Rodrigues Tougues e, pela conversa insinuante, via-se que eram dados ao
folguedo, coisa bem habitual entre primos. O duo avançou em direcção à
escadaria da igreja, mas uns metros à frente surgiram Ramiro e o pai, que
estacaram quando se cruzaram com Chamoa e seu primo.
Chamoa..., murmurou Ramiro,
visivelmente atrapalhado. Filho ilegítimo de Paio Soares, dizia-se que de uma
soldadeira, apresentava um saiote coçado, calçava umas abarcas e usava umas
longas e velhas meias. Sendo um infanção, que não herdaria terra ou castelo,
Ramiro vestia-se como um servo pobre, e o contraste com o homem ao seu lado era
drástico. Aperaltado numa luxuosa dalmática escarlate, com um belo punhal à
ilharga, no topo de cujo cabo se destacava uma pérola, Paio Soares parecia não
seu pai, mas seu amo e senhor. Rico-homem da Maia e antigo alferes do conde Henrique,
Paio Soares afastara-se de dona Teresa há uns anos, receando as ameaças da
rainha Urraca, mas agora que esta morrera havia quem dissesse que dona Teresa o
tentava aliciar de novo e por isso o convidara para passar a Páscoa em Viseu.
Embora alguns ainda recordassem a
recusa de ir a Lanhoso ajudar a mãe do príncipe, seis anos antes, não havia
nenhuma humilhação irrazoável, nem ofensa pessoal entre ele e Fernão Peres.
Todos estimavam aquele nobre portucalense, recordavam com respeito as suas façanhas
de combatente contra os mouros, e sabiam também que dispunha dos maiores territórios
do Condado. Além disso, estava viúvo, pois a esposa morrera-lhe há dois anos, e
do seu casamento religioso apenas haviam nascido duas raparigas, ambas mortas
em crianças. Aos quarenta anos, aquele era um homem poderoso mas solitário, e
era esse vazio que dona Teresa visava preencher, procurando para ele uma esposa
capaz de dar-lhe um varão legítimo. A nova política matrimonial de dona Teresa
e do Trava era límpida e interesseira: casar os nobres do Sul da Galiza com as
meninas nobres de Entre Douro e Minho, e os nobres de Entre Douro e Minho com
as meninas nobres do Sul da Galiza». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal,
Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,