Londres, 25 de Maio de 1537
«Quando
uma execução na fogueira é anunciada, as tabernas de Smith eld encomendam
barris extras de cerveja, mas quando a pessoa a ser executada é uma mulher, e
ainda por cima pertencente à nobreza, a bebida chega em carroças lotadas. Eu
iria andar numa dessas carroças na sexta-feira de Pentecostes, no ano do
reinado do rei Henrique VIII, para rezar pela alma de lady Margaret Bulmer, a
traidora condenada. Pude ouvir o chamado do carroceiro enquanto seguia para a
Cheapside Street, apertando na mão o mapa de Londres que, duas noites antes, eu
copiara em segredo de um livro. Agora que eu tinha chegado a uma rua grande e
calçada com pedras, conseguia andar mais depressa, mas minhas pernas latejavam.
Havia passado a manhã inteira caminhando com dificuldade na lama. Smithfield!
Está indo para Smithfield? A voz soava alegre, como se o destino ao qual se
referia fosse uma feira do Dia de São Jorge. Logo à frente, diante de um
curtume, vi quem tinha gritado: um homem grandalhão que açoitava o lombo de
quatro cavalos atrelados a uma grande carroça. Meia dúzia de cabeças espiavam
por cima da borda.
Espere!, gritei o mais alto possível.
Eu quero ir para Smithfield! O carroceiro se virou e seus olhos vasculharam a
multidão. Acenei, e seu rosto se iluminou com um sorriso caloroso. Conforme eu
me aproximava, minha barriga se contraía. Eu tinha prometido não falar com
ninguém naquele dia, nem pedir ajuda. O risco de ser descoberta era enorme. Mas
Smith eld cava a norte e a oeste de Londres, fora dos limites da cidade, e
ainda faltava muito para chegar lá. Quando me aproximei, o carroceiro me olhou
de cima a baixo e seu sorriso desapareceu. Eu estava usando uma pesada túnica
de lã, a única que consegui para a viagem. Era feita para o mais rigoroso dos
invernos, não para a primavera, muito menos para um dia em que a névoa mantinha
o clima abafado. A bainha amarfanhada da túnica estava encharcada de lama. Mas
pelo menos eu me sentia grata por ninguém conseguir ver, através do tecido
grosso, minha combinação molhada de suor.
Mas eu sabia que não eram apenas
as roupas desarrumadas que estavam fazendo o carroceiro pensar duas vezes.
Muitas pessoas achavam minha aparência estranha. Meus cabelos são negros como ônix
polido e meus olhos são castanhos, salpicados de verde. Minha pele morena não
era vermelha em Julho, nem pálida em Dezembro. Minha pele é como a de minha mãe
espanhola, mas não tenho os seus traços delicados. O meu rosto puxou ao do meu pai,
que era inglês: testa larga, malares saltados, queixo marcado. É como se a incompatibilidade
do casamento dos meus pais travasse uma batalha no meu rosto, bem à vista de
todos. Em uma terra de moças rosadas e brancas, eu me destaco feito um corvo.
Houve um tempo em que isso me incomodava, mas agora, aos 26 anos, eu já não me
preocupava com coisas tão bobas. Um xelim pela viagem, moça, disse o
carroceiro. Pague e vamos indo.
Seu pedido me pegou de surpresa,
embora eu devesse estar preparada para a cobrança. Estou sem moedas, gaguejei. O
carroceiro soltou uma risada que foi como um latido. Acha que eu faço isso por
diversão? Escute aqui, moça, me restou pouca cerveja... Ele deu um soco no
barril de madeira atrás de si. …e tenho que ganhar o suficiente para pagar pela
carroça. Por trás do barril, eu podia ver seus passageiros espichando o pescoço
para me olhar. Espere, falei, levando a mão à bolsinha de pano dentro do bolso
que eu havia costurado na parte interna da roupa. Agitando os dedos lá dentro,
encontrei um anel. Não queria dar a ele nada de mais valioso. Tinha subornos
importantes pela frente. Estendi o anel. Isto aqui serve? Num segundo, a cara
feia do carroceiro se transformou numa expressão de deleite, e o anel de ouro
de minha falecida mãe sumiu na palma suja da sua mão.
Ao subir na traseira da carroça,
pude distinguir pena e desprezo no rosto dos outros viajantes. Meu anel devia
valer bem mais do que o percurso. Encontrei um monte de palha limpa num canto,
sentei-me e baixei os olhos, tentando evitar os olhares curiosos, enquanto a
carroça retomava o seu curso. Senti um cotovelo me cutucar nas costelas. Uma
mulher corpulenta escorregou para mais perto de mim. Era uma senhora de meia-idade,
a única outra pessoa do sexo feminino naquela carroça. Sorrindo, ela me
estendeu um pedaço de pão. Eu não comia nada desde a ceia da véspera. Em geral
apreciava a sensação de fome, o facto de dominar minha carne mortal e fraca,
mas aquela missão exigia certo vigor. Peguei o pão com um meneio agradecido da
cabeça. Um bocado de comida e um gole de cerveja aguada do cantil de madeira da
mulher fortaleceram meu corpo entorpecido.
Eu me recostei numa lateral da
carroça. Passámos por um pequeno mercado que parecia não vender outra coisa que
não especiarias e ervas. Agora que havia parado de chover, os vendedores
retiravam as mantas que mantinham secas as suas bancadas estreitas. O odor de
uma rica mistura de borragem, sálvia, tomilho, alecrim, salsa e cebolinha se
espalhou pelo ar e se dissipou depois que passamos. Os cheiros da cidade
voltaram a predominar. Avistei umas construções de quatro andares, mais prósperas
do que quaisquer outras que eu já vira antes. A placa de um ourives pendia numa
esquina». In Nancy Bilyeau, Os Mistérios da Coroa, Editora Arqueiro, 2012, ISBN
978-858-041-082-2.
Cortesia de EArqueiro/JDACT
JDACT, Nancy Bilyeau, Literatura, Londres,