Londres, 25 de Maio de 1537
«(…)
Um rapaz sentado à minha frente abriu um sorriso e disse, em voz alta, para a carroça
inteira escutar: estamos gratos ao rei por queimar uma bela jovem em Smith eld.
A última pessoa a morrer na fogueira foi um falsário velho e feio. Um bolo de pão
mastigado me subiu pela garganta e cobri a boca com a mão. Mas ela é bonita
mesmo?, perguntou alguém. Um homem já idoso, de olhos azuis leitosos, enrolava
com o dedo um pelo comprido que brotava do meio de seu queixo. Eu conheço uma
pessoa que já viu lady Bulmer em carne e osso, e ela é bonita, sim, disse ele
devagar. Mais do que a rainha. Que rainha?, gritou um dos homens. Todas as três,
respondeu outro. Uma risada nervosa percorreu a carroça. Era crime zombar dos casamentos
do rei, que se divorciara da primeira esposa e executara a segunda para dar
lugar à terceira. Muita gente já tinha perdido mãos e orelhas por causa disso. O
velho torceu o pelo do queixo com mais força.
Lady Bulmer deve ter ofendido
muito o rei para ele mandar queimá-la em praça pública diante dos plebeus, em
vez de mandar decapitá-la perto da torre ou de enforcá-la em Tyburn. Eles
trouxeram para Londres todos os nobres e dalgos, todos os seguidores de Robert
Aske, disse o rapaz. Para receber a justiça do rei. Ela vai ser apenas a
primeira a ser executada.
Minha respiração se acelerou. O
que aqueles londrinos iriam dizer, o que iriam fazer comigo se soubessem quem
eu era e de onde vinha? Uma coisa era certa: eu jamais chegaria a Smithfield. Busquei
nas minhas preces algo para me fortalecer. Senhor meu Deus, ajudai-me a ser
obediente sem reservas, pobre sem servilidade e casta sem excepção. Essa tal de
Margaret Bulmer é uma rebelde imunda!, gritou a mulher que tinha dividido o pão
comigo. Uma papista do norte que conspirou para derrubar nosso rei. Humilde,
alegre sem esbórnia, séria sem afectação, activa sem frivolidade, submissa sem
amargura, verdadeira sem duplicidade. Com voz branda, o velho disse: no norte,
as pessoas deram a vida pelas tradições. Queriam proteger os mosteiros. Todos
soltaram exclamações de desprezo. Aqueles monges gordos escondendo potes de
ouro enquanto os pobres morrem de fome do lado de fora dos seus muros.
Ouvi falar numa freira que pariu
o bastardo de um padre. As freiras são todas pu… Ou então aleijadas..., ou estúpidas,
desprezadas pelas famílias. Ouvi um ruído rascante. Foi minha própria risada,
uma risada amarga, sem alegria, e que ninguém escutou, pois nesse mesmo
instante ouviu-se um grito do lado de fora da carroça. Uma criança de rua
passou correndo, tão depressa que ultrapassou os nossos cavalos. Um olhar de pânico
por cima do ombro revelou que não era um menino, mas sim uma menina de rosto
encardido, com os cabelos cortados curtos.
Um punhado de terra voou pelo ar
e atingiu seu ombro. Ai!, gritou ela. Seus cachorros! Dois meninos grandes
apareceram junto à lateral da carroça e riram. Iriam alcançá-la dali a um
minuto. Os homens em cima da carroça atiçaram a perseguição. A menina saiu
correndo pela rua em direcção às lojas. Outra garota acenou do vão de uma
porta. Por aqui!, gritou. A moça entrou, e a porta se fechou atrás das duas. Os
meninos chegaram segundos depois e começaram a esmurrar a porta, mas estava trancada.
Fechei os olhos. Era outra menina quem corria. Aos 8 anos, sem ar, com a barriga
doendo, eu corria por um caminho cercado por altas sebes de teixo, em busca de
uma saída. Podia ouvir pessoas chamando meu nome, mas não conseguia vê-las. Rápido,
Joanna, rápido... nós vamos jogar ténis depois!, gritavam meus primos, tão
fortes, tão duros.
Vamos, menina, você consegue!,
bradava o meu tio Edward Stafford, terceiro duque de Buckingham e chefe da família.
Tem que encontrar a sua própria saída. Não podemos mandar ninguém atrás de vós
e correr o risco de perder mais uma criança». In Nancy Bilyeau, Os Mistérios da
Coroa, Editora Arqueiro, 2012, ISBN 978-858-041-082-2.
Cortesia de EArqueiro/JDACT
JDACT, Nancy Bilyeau, Literatura, Londres,