«(…) Poucos dias depois da minha demissão eu comecei uma fase Colette, que me consumiu vários meses. E eu tinha outras preocupações urgentes. As provas finais aconteceriam dali a poucas semanas e eu estava de namorado novo, um historiador chamado Jeremy Mott. Ele era de um tipinho antiquado, esguio, nariz comprido, com um pomo de adão exagerado. Era descabelado, inteligente sem ser pretensioso, e extremamente educado. Eu tinha notado vários homens como ele por ali. Eles pareciam ser todos descendentes de uma mesma família e ter vindo de escolas de qualidade do norte da Inglaterra, onde recebiam as mesmas roupas. Eram os últimos homens da Terra que ainda usavam casacos de tweed Harris com couro nos cotovelos e debrum nos punhos. Fiquei sabendo, não pelo Jeremy, que achavam que ele ia se formar com louvor e distinção e que ele já tinha publicado um artigo numa revista académica de estudos do século XVI. Ele acabou se revelando um amante delicado e atento, apesar de ter um ossinho infeliz e pontudo no púbis que na primeira vez doeu demais. Ele pediu desculpas, como quem pede desculpas por um parente doido mas distante. Ou seja, não ficou particularmente constrangido. Nós resolvemos a questão fazendo amor com uma toalha dobrada entre nós, um paliativo que eu senti que ele já tinha usado antes. Ele era atencioso e competente de verdade, e eu podia ficar naquilo o quanto quisesse, e mais ainda, até não conseguir aguentar mais. Mas os orgasmos dele eram difíceis, apesar dos meus esforços, e eu comecei a suspeitar que havia alguma coisa que ele queria que eu dissesse ou fizesse. Ele não me dizia o que era. Ou melhor, ele insistia que não havia nada. Não acreditei nele. Queria que ele tivesse um desejo secreto e vergonhoso que só eu pudesse satisfazer. Queria fazer esse homem altivo e cortês ser todo meu. Será que ele queria me dar um tapa no traseiro, ou que eu desse uns tapas no dele? Será que ele queria vestir as minhas calcinhas? Esse mistério me obcecava quando eu estava longe dele, e tornava ainda mais difícil parar de pensar nele quando eu devia estar me concentrando na matemática. Colette era a minha fuga.
Uma
tarde, no começo de Abril, depois de uma sessão com a toalhinha dobrada no
quarto de Jeremy, nós estávamos atravessando a rua perto do Corn Exchange, eu
numa nuvem de felicidade e com alguma dor derivada disso, por causa de um músculo
distendido nas costas, e ele, bom, eu não sabia direito. Enquanto nós andávamos
eu estava pensando se devia tocar naquele assunto de novo. Ele estava um amor,
com o braço largado pesando nos meus ombros enquanto me falava do seu ensaio
sobre a Câmara Estrelada. Eu estava convencida de que ele não estava plenamente
realizado. Eu achava que dava para perceber isso na tensão da voz dele, naquele
passo nervoso. Depois de dias fazendo amor ele não tinha recebido a bênção de
um único orgasmo. Eu queria ajudar, e estava curiosa de verdade. Também estava
torturada pela ideia de que podia estar deixando ele na mão. Ele se excitava
comigo, até aí estava claro, mas talvez não me desejasse o bastante. Nós
passamos pelo Corn Exchange no friozinho do crepúsculo de uma Primavera húmida,
com o braço do meu namorado em volta de mim como uma estola de pele de raposa e
a minha felicidade vagamente comprometida por uma pontadinha nas costas e só um
pouco mais comprometida pelo enigma dos desejos de Jeremy.
De
repente, de uma ruela lateral, apareceu na nossa frente sob a inadequada luz
dos postes o orientador de Jeremy, Tony Canning. Quando nós fomos apresentados,
ele apertou a minha mão e ficou segurando tempo demais, eu achei. Ele estava
com cinquenta e poucos anos, mais ou menos a idade do meu pai, e eu sabia só o
que o Jeremy tinha me contado. Ele era professor, era um antigo amigo do secretário
do Interior, Reggie Maudling, que tinha vindo jantar na universidade. Os dois
homens tinham rompido numa noite de bebedeira, por causa da política de detenções
sem julgamento na Irlanda do Norte. O professor Canning tinha sido presidente
de uma Comissão de Sítios Históricos, era membro de vários conselhos, inclusive
do British Museum, e tinha escrito um livro muito elogiado sobre o Congresso de
Viena.
Ele
pertencia aos bons e grandes, um tipo que me era vagamente familiar. Homens
como ele passavam pela nossa casa para fazer uma visita ao bispo de vez em
quando. É claro que eram irritantes para qualquer um abaixo dos vinte e cinco
anos naquele período pós-anos 1960, mas eu até que gostava deles. Eles podiam
ser muito encantadores, e até espirituosos, e o rasto que deixavam, de charutos
e brandy, fazia o mundo parecer organizado e rico. Eles se tinham em alta
conta, mas não pareciam desonestos, e tinham, ou davam a impressão de ter, uma
vigorosa noção de dever público. Levavam a sério os seus prazeres (vinho,
comida, pesca, bridge etc.) e aparentemente alguns deles tinham participado de
uma guerra interessante. Eu tinha lembranças de Natais da minha infância em que
um ou dois deles deram uma nota de dez xelins para mim e para a minha irmã.
Tudo bem que esses sujeitos controlassem o mundo. Tinha gente muito pior». ». In Ian McEwan, Serena, Companhia das
Letras, 2012, ISBN 978-853-592-121-2.
Cortesia da CdasLetras/JDACT
JDACT, Ian McEwan, Literatura, Narrativa,