«(…) Sim, aqui estava o documento, exactamente no lugar onde Louis suspeitava tê-lo guardado. O cofre do escritório. Pela primeira vez leu o documento assinado por Duvernois. Pareceu-lhe tudo tal como combinado: em 18 de Novembro de 1857, se não dispusesse dos dois bilhões de francos que lhe devia, o tabelião comprometia-se a passar para a sua propriedade o edifício onde moro, no nº 42 da Rue des Archives, o edifício no 71 da Rue des Francs Bourgeois, o nº 60 da Rue de Rosiers, a minha casa de Saint-Cast-le-Guido, e todos os bens e pessoas que nelas houver. Todos os bens e pessoas..., repetiu Villeclaire, batendo com o rolo de papéis na palma da mão. Começou a percorrer a biblioteca em grandes passadas. A escritura de dívida mais parecia um testamento. Duvernois entregava-lhe tudo o que era seu. A mulher também, se a houvesse. E havendo..., teria de encontrar uma solução para a velha senhora Duvernois. Como seria ela? Talvez uma velhota simpática e bondosa. De repente, sentiu um aperto no coração. Se fosse esse o caso, dentro de algumas horas ficaria com tudo o que até aí tinha sido dela. Talvez a senhora estivesse aliviada por se ver livre do insuportável Duvernois, viciado em jogo e apostas. Talvez pensasse que agora poderia acabar os seus dias em paz. E ele ia aparecer para lhe roubar as últimas esperanças. E se a velhota fosse, de facto, simpática e bondosa... Não seja piegas, Louis!, disse para si mesmo, em voz alta. E logo ali decidiu que, se fosse esse o caso, lhe proporia um resto de vida descansado e confortável no convento das Ursulinas, para onde se podia retirar com uma criada para servi-la. Ele próprio se encarregaria do dote e de dizer à Superiora que se tratava de uma parente muito afastada e viúva. Ou, se a solidão da clausura não lhe agradasse, poderia ceder-lhe um dos muitos apartamentos num dos prédios de que era dono. Não nos Champs Ely sées, mas perto da Sorbonne, um daqueles apartamentos pequenos e antigos que alugava a estudantes que nunca lhe pagavam o aluguel. De qualquer modo, deixaria que madame Duvernois vivesse num deles. Daria-lhe uma pequena pensão anual e uma criada. Qualquer coisa que permitisse viver modestamente mas com decência.
Logo veria com
Laval, o seu procurador, de quanto poderia ser a pensão. De repente, franziu a
sua bela testa e os olhos azuis tornaram-se frios como aço. E se a velha fosse
insuportável como o marido? Uma dessas velhas rabugentas, que desatam aos
gritos, que arrancam os cabelos... Sim, podia muito bem ser um osso duro de
roer. Era até o mais provável! Que velhinha bondosa e simpática teria alguma
vez casado com Duvernois na juventude? Nesse caso, nem apartamento nem Ursulinas,
um convento qualquer, desses que recolhem indigentes, seria mais do que
suficiente. Ao diabo com a velha!, murmurou. Nesse momento bateram à porta da
biblioteca e Maurice anunciou que a carruagem já estava pronta e à espera.
A casa da Rue des
Archives era sólida, grande, com uma enorme porta de madeira trabalhada e
janelas fechadas, nos três andares. Parecia desabitada. Talvez tenham ido
embora... Talvez tenha chegado tarde demais..., pensou Louis Villeclaire quando
saiu da carruagem. A neve já se acumulava na calçada e havia pouca gente na
rua. Amaldiço-ou o tempo que o fazia sair de casa com aquele frio e puxou a
corrente de metal que fez soar um sino, longe da porta mas suficientemente audível.
Teve de esperar uns minutos, dando alguns passos de um lado para o outro para não
enregelar, até que a porta se abriu e Louis pôde ver um criado de meia-idade, mal-encarado
e mal vestido, com chinelos de fazenda grossa e embrulhado numa manta. Faça o
favor de dizer...
O jovem marquês hesitou uns segundos. Dizer o quê? Que vinha
apresentar os seus pêsames à família? E se não houvesse família? Devia ter-se
informado antes, mas andou muito ocupado entre os braços de Cléa e os de madame
Bousquet. Agora, não tinha outro remédio senão supor que havia, de facto, uma família
que devia ser cumprimentada. Sou o marquês de Villeclaire. Venho apresentar os
meus pêsames à família. O criado afastou-se um pouco da porta para lhe dar
passagem. Faça favor de entrar, vou anunciá-lo. A casa cheirava a mofo e era
escura, mas ainda assim Louis pôde reparar na decrepitude que o rodeava. As
enormes tábuas do chão rangiam sob os seus pés e os móveis estavam cobertos de
pó. Os quadros eram soturnos, as pratas estavam sujas. O criado conduziu-o a
uma sala grande, onde os estofos das cadeiras de palhas estavam puídas e os
tapetes já tinham conhecido melhores dias, abriu as grandes portadas das
janelas e deixou-o à espera. Durante uns breves minutos Villeclaire pôde
observar tudo em pormenor, à fraca luz que entrava pelos vidros sujos. Aquela
sala tinha manifestos sinais de já ter tido outra vida. Certamente teria havido
ali dias alegres, de bailes e reuniões sociais. Aquelas paredes tinham sido
testemunhas de gargalhadas e segredos, conversas de senhoras e reuniões de homens».
In
Matilda Wright, Aposta Indecente, 2011, Editor Livros d’Hoje, Publicações dom
Quixote, 2011, ISBN 978-972-204-776-0.
Cortesia de Ld’Hoje/JDACT
JDACT, Literatura, Matilda Wright,