segunda-feira, 19 de julho de 2021

Elena. Marina Carvalho. «As palavras me fogem. O amor que aperta meu peito parece que quer me sufocar de tão intenso. Ainda não passam de dois pontinhos minúsculos…»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

Elena

«(…) Ela está recostada na cabeceira da cama, cochilando. A aparência é a mesma: esguia, charmosa, iluminada, embora pareça mais pálida. Meus olhos se enchem de lágrimas ao vê-la. Tento não acordá-la, mas o barulho da porta rangendo ao ser aberta é o suficiente para fazê-la despertar. Elena! A mãe suspira, abrindo os braços, para onde corro sem pensar duas vezes. Ficamos abraçadas por um longo tempo, sem falar nada, apenas sentindo o toque uma da outra. Sempre fui o carinho do pai. No entanto, minha ligação com minha mãe ultrapassa o senso comum. Nem acredito que esteja aqui!, comenta ela, assim que nos afastamos. A mãe analisa as minhas feições com cuidado, sem conseguir esconder a admiração por eu ter-me mantido de pé diante dos perrengues que passei na Nigéria. Enxergo o orgulho nos seus olhos. Fez-me muita falta, bonequinha. O apelido carinhoso que ela me deu há anos não me envergonha. Não mais. Houve uma época em que tentei eliminá-lo a qualquer custo. Ai, mãe. Também estava com saudade. Foi duro ficar esse tempo todo longe de vós. Ela concorda, acariciando meus cabelos. Como está se sentindo? Eu preciso ouvir a resposta dela e testar a sua sinceridade. Estou bem. Estamos, na verdade. Com carinho, a princesa Ana pousa as mãos sobre o ventre. Eu coloco as minhas sobre as dela. Sinto uma energia inexplicável. Inacreditável, não é? Nossa... As palavras me fogem. O amor que aperta meu peito parece que quer me sufocar de tão intenso. Ainda não passam de dois pontinhos minúsculos, mas, mesmo assim, já amo demais esses dois.

Faço que sim com a cabeça. Ela tem razão. Esses lances de vínculo familiar são mesmo meio difíceis de explicar. Eles existem e pronto. Mas preferia não ter que ficar de molho. Foi só a médica mencionar isso para o seu pai levar as palavras dela ao pé da letra, reclama a mãe, de nariz torcido. Por ele, vou passar os próximos meses deitada nesta cama, sendo alimentada a cada três horas, como um recém-nascido. Solto um risinho de solidariedade. Coitada. Não deve ser fácil lidar com as preocupações excessivas do meu pai. E eu sei muito bem como ele costuma agir em relação às mulheres na sua vida, afinal, represento 50 por cento desse grupo. Seu avô também não tem facilitado. E Irina, obviamente. Então aproveite. Porque depois, com o nascimento dos gêmeos, nós não teremos muita folga, não é mesmo? Nós, é? É claro! A mãe sorri e me abraça outra vez. Querida, é impressão minha ou dá para sentir os ossos da sua costela por baixo da jaqueta? Bom..., sabe..., eu não passei uma temporada num resort da Bahia, respondo, e dou de ombros.

Minha mãe franze a testa e deixa que o seu instinto maternal fale por ela. Pelos minutos seguintes, ela deixa bem claro que vai me fazer recuperar cada nutriente perdido durante os últimos meses longe de casa. Nem adianta eu argumentar que não tenho a intenção de devolver ao meu corpo os quilinhos ausentes. Só eu sei como luto contra eles. Infelizmente não nasci fininha como a mãe. Tenho a constituição física mais parecida com a da avó Olívia, ou seja, sou cheia de curvas, algumas sinuosas demais para o meu gosto. Vamos saltar essa parte, mãe, e me conte como andam as coisas por aqui, peço, ansiosa para ter notícias de todos.

Enquanto eu estava na Nigéria, minhas ligações para casa eram tão raras, não apenas pelo trabalho que exigia muito de mim, mas, sobretudo, pela precariedade do serviço de telefonia que atendia o povoado, que eu não conseguia ser colocada a par de tudo o que andava ocorrendo na Krósvia. Então, por causa da minha total falta de informação, a mãe passa horas relatando os últimos acontecimentos. Fico sabendo, por ela, que a grande novidade da família é o casamento de Luce. A cerimónia está marcada para ser realizada no castelo mesmo, daqui a sete dias». In Marina Carvalho, Elena, a filha da princesa, Galera Record, 2015, ISBN 978-850-110-492-2.

Cortesia de GaleriaR/JDACT

JDACT, Marina Carvalho, Literatura,