«Súbitas rajadas de vento bufaram do Sul. Com estardalhaço, uma chapa de zinco vinda não se sabe donde, voou de um lado da estrada, deu quatro pinotes grotescos e foi engarrafar-se, silenciosa e miserável, na valeta do outro lado. Logo uma bátega varreu a estrada. Os homens, já encharcados pelos chuviscos que caíam desde o alvorecer, procuraram abrigo junto aos troncos esbeltos dos pinheiros. Só dois rapazitos se deixaram ficar a britar pedra, rindo dos homens que fugiam à chuva. Encolhidos e colados às árvores, os homens gritaram que se abrigassem. Vendo-se observados, os rapazitos mais riram ainda e um deles, sempre britando pedra, começou a esticar o pescoço alto e esgalgado, pondo os olhos em alvo e lambendo a água que lhe escorria cara abaixo. O outro, piscando os olhos, olhava o companheiro, olhava os homens e parecia dizer: somos engraçados, não somos? Vejam aqueles diabos, disse um velho, procurando enrolar-se num casaco tão pequeno que dir-se-ia de criança.
O homenzinho magro a quem se
dirigia encolheu os ombros. Já não temos outro dia, disse numa voz branda e
cansada. Como para lhe dar razão, o vento soprou mais forte, o ar escureceu, o
céu pegou-se à terra, os fios de água continuaram a engrossar. Um a um, os
homens largavam então os fracos abrigos. Alguns em passo forçado, outros em
corridas curtas, outros com seu passo natural, como achando indigno apressar-se
por coisa tão pouca, dirigiram-se a uma casa isolada que a uma centena de
metros parecia agachar-se debaixo da chuva. Havia ali uma taberna e, se nem
todos estavam dispostos a beber, ao menos sempre teriam um tecto em cima. Vendo
os companheiros afastarem-se, os dois garotos atiraram as marretas ao chão. O do
pescoço alto partiu como uma flecha, espadeirando as poças de água com os pés
nus e agitando os braços em gestos largos e desengonçados, a querer
possivelmente significar que era um grande nadador. O outro seguiu, sacudido de
riso. Chegaram antes de todos à taberna, mas o engraçado, incapaz de ali
esperar, veio para a chuva, chamando os homens com os braços e reivindicando
assim a iniciativa e a descoberta de tão magnífico abrigo.
Foram-se juntando no pequeno e
escuro compartimento. Amontoados à porta, olhavam para fora a insinuar ao
taberneiro que estariam ali só um instante a abrigar-se da chuva. As ocasiões
de negócio eram porém raras e o taberneiro, apressado, pôs-se a lavar os copos
já lavados, olhando os homens a pedir desculpa da demora em os servir. Seja
pela vergonha de negar tão claro convite, seja porque lhes parecesse não
poderem ali ficar todos sem gastar um tostão, seja pela força do pecado, três
homens, com ar solene, chegaram-se para beber. Então todos os outros se
instalaram mais à vontade, sentando-se uns à roda da mesa, fugindo outros do vão
da porta, onde a chuva martelava trazida pelo vento. Já não temos outro dia,
repetiu o homenzinho magro. Era bem precisa, era bem precisa, disse o velho,
que não conseguira ainda, nem conseguiria nunca, ajeitar pelos ombros o minúsculo
casaquinho.
Todos aqueles homens eram mais
camponeses que operários, alguns tinham mesmo a sua leira de terra, e, como a
estiagem fora grande, sentiam-se tentados a perdoar a molha e a tarde de
trabalho perdida. Silenciosos, repassados, fitavam no rectângulo de claridade
da porta a cortina de água que quase vedava à vista o outro lado da estrada e
apuravam o ouvido ao ruído surdo e amplo perdendo-se na profundidade do pinhal
e acusando o peso da bátega. Até os garotos estavam silenciosos, e o engraçado,
com um ar triste que se julgaria impossível naquele rosto minutos antes, fazia
esforços para reter as tremuras de frio dos membros arroxeados. Num momento em
que a chuva caía mais forte, uma sombra passou rápida diante da porta e, antes
de alguém ter ido ver do que se tratava, a sombra voltou a aparecer e um homem
entrou. Vinha curvado para a frente, abanando os braços e a cabeça para fazer
escorrer a água das mangas do casaco e do boné. Quando julgou completada a
operação, endireitou-se e, dando os bons-dias, mostrou um rosto largo,
anguloso, de pele branca e de expressão severa, onde os olhos se destacavam
pela sua fixidez. Um dos garotos, reparando nas calças metidas por dentro das
meias, chegou à porta, espreitou para fora, disse qualquer coisa a um dos
homens e este dirigiu-se ao desconhecido. Meta a máquina dentro. Há muito
lugar. O desconhecido pareceu não ouvir. Limpava a cara e o pescoço com um lenço.
Algum dos senhores sabe dizer-me o caminho para o Vale da Égua?, perguntou. Os
homens entreolharam-se. Alguns mostraram um sorriso mal-disfarçado. Para onde?,
perguntou de um canto uma voz. Vale da Égua». In Manuel Tiago, Até Amanhã
Camaradas, Editorial Avante, 1989, Lisboa, 2001, ISBN 972-747-534-5.
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