«(…) Mãe luminosa, eu escrevo estas cartas em louvor a ti, que foste minha boa mestra e nutriz. Tua fábula sobre o jardim da alquimia não era uma mentira. Encontrei esse jardim na sombra do claustro, além do tétrico portal de Nigredo. Assim denomino a primeira etapa da Obra, pois a matéria a ser forjada se encontra ainda em estado de obscuridade e imperfeição. Essa obscuridade me lembra a lã bruta, a que faltam a forma e a graça. Ninguém pagaria nada por ela, embora esconda dotes maravilhosos. Um grande mistério se oculta em Nigredo, o ventre escuro da terra.
O cardeal Romano Frangipane
franziu a testa numa expressão de dúvida e repôs a carta no estojo de onde a
tirara, junto a outras ainda não lidas. Quem poderia ter escrito coisas tão
delirantes? Certamente uma freira enlouquecida no claustro ou talvez uma beata.
A vibração na pálpebra esquerda prenunciou a chegada de uma dor de cabeça. O
prelado suspirou, resignando-se a acolher o incómodo, consequência inevitável
de suas mudanças de humor. Embora ele sofresse daquelas crises desde a
juventude, elas haviam se agravado ultimamente, obrigando-o a refugiar-se no
escuro e no silêncio completo. No entanto, disse para si mesmo, o agravamento
dos distúrbios nervosos era normal em certas situações, sobretudo na prisão.
Fazia semanas que definhava naquela torre, ou talvez meses. As janelas se
abriam para um céu cinzento, coberto de névoa e fumaça negra, que não permitiam
acompanhar a sucessão dos dias e das noites. Era já um milagre poder conservar
a lucidez e o raciocínio. Um ressoar de passos leves antecipou a entrada de uma
dama de cabelos ruivos presos num coque. Frangipane saudou-a obsequiosamente e empertigou
o copo maciço, cruzando sobre o ventre os dedos que exibiam seis anéis de ouro.
Vossa majestade parece preocupada, observou o prelado. E como poderia não
estar, eminência? O cardeal sentiu uma pontada na têmpora esquerda, seguida de
pulsações que se ramificavam pela testa. Não desanime, minha senhora. Tu és
Branca de Castela, rainha da França. Virão logo socorrê-la. A dama lançou-lhe
um olhar de censura. Cardeal de Sant’Angelo, por favor, poupe-me dessa conversa
enfadonha. Diante dessas palavras, a dor de cabeça do cardeal se intensificou, despertando
em Frangipane a vontade de pegar aquela mulher pelo pescoço e estrangulá-la.
Foi um impulso violento, como violenta era a aversão que nutria por ela, por
seu ar de sensualidade e soberba. Não por acaso, na corte, chamavam-na de Dame
Hersent, a loba do fabliau da raposa Renard. E ele a via assim
naquele momento, uma mulher insolente e lasciva. Tomado por essa onda de emoções,
o cardeal chegou a pensar em esbofetear a Dame Hersent como se ela fosse uma
meretriz de quatro tostões, mas, contendo-se, cerrou as mandíbulas e esboçou um
sorriso paternal. Vossa majestade deve ter paciência e ser forte. Em breve, seu
exército assediará este castelo e o conde de Nigredo será obrigado a libertá-la.
Não é tão simples assim. Branca
caminhou até ao prelado balançando os quadris sob o vestido azul. Ela ainda não
completara 40 anos e, embora houvesse acabado de dar à luz seu undécimo filho,
parecia fresca como uma rosa. Finge não entender? Nosso exército se dividiu e
vaga perdido pelo Languedoque. Seu comandante, Humbert Beaujeu, foi encarcerado
connosco nesta torre. O cardeal de Sant’Angelo teve de concordar, incapaz de
desviar os olhos daquela mulher. A dor de cabeça lhe provocava uma leve
vertigem, que acalmava a ira sentida pouco antes. Tinha agora outras fantasias.
Imaginava percorrer-lhe o pescoço com toques suaves e depois ir descendo, sob o
vestido... Comprimiu os lóbulos frontais com o indicador e o polegar, como para
impedir que sua cabeça se partisse ao meio. Por que o atormentavam desejos que
jamais concretizara? Se ao menos pudesse mergulhar o rosto em água gelada!
Combateu aqueles impulsos doentios e esforçou-se para falar com firmeza: Outro
logo substituirá Humbert Beaujeu, nosso lieutenant, e retomará as rédeas
das milícias. Tomara que esteja certo, disse Branca, que não parecia notar o conflito
interior do cardeal. Mas diga-me, nenhuma notícia de nosso carcereiro? Não foi
visto até agora. Não entendo, suspirou Branca. O cardeal de Sant’Angelo
assentiu com um gesto de cabeça. É uma situação estranha. O conde de Nigredo não
revelou ainda suas intenções. Limita-se a manter-nos prisioneiros. Talvez isso
lhe baste para alcançar seus desígnios. Quais seriam eles?» In Marcello Simoni, A
Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube
do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.
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