Segunda-feira, 4 de Julho de 2005
«(…) Nos dias e semanas que estão
por vir, Alice vai se lembrar desse instante. Vai lembrar-se da qualidade da
luz, do gosto metálico de sangue e poeira na sua boca, e vai perguntar-se como
as coisas poderiam ter sido diferentes se ela tivesse resolvido descer, e não
ficar. Se tivesse seguido as regras. Ela sorve a última gota de água da garrafa
e a joga dentro da mochila. Durante uma ou duas horas depois disso, enquanto o
sol vai ficando mais alto no céu e a temperatura vai subindo, Alice continua a
trabalhar. Os únicos barulhos são o raspar do metal na pedra, o zumbido dos
insetos e o ronco ocasional de um pequeno avião ao longe. Ela pode sentir gotas
de suor brotando acima do seu lábio superior e entre seus seios, mas continua
até que, finalmente, o vão debaixo da pedra fica grande o suficiente para ela
poder pôr a mão lá dentro. Alice se ajoelha no chão e encosta a bochecha e o ombro
na pedra para se apoiar. Então, com um pequeno estremecimento de ansiedade,
insere os dedos bem no fundo da terra escura e cega. Percebe imediatamente que seu
palpite estava certo e que encontrou alguma coisa importante. O objecto tem uma
textura lisa e escorregadia; parece feito de metal e não de pedra. Empunhando-o
com firmeza e dizendo a si mesma para moderar as próprias expectativas, vai
trazendo-o muito devagar até à luz. A terra parece estremecer, sem querer
entregar seu tesouro.
O cheiro forte e pungente de
terra húmida invade seu nariz e sua garganta, embora ela mal perceba. Já está
perdida no passado, fascinada pelo pedaço de história que segura na palma das
mãos. E uma fivela pesada e redonda, manchada de pontinhos pretos e verdes
devido à idade e ao longo tempo debaixo da terra. Alice a esfrega com os dedos
e sorri quando os detalhes de prata e cobre começam a se revelar debaixo da
sujeira. A primeira vista, também parece ser medieval, o tipo de fivela usado
para fechar um manto ou uma túnica. Ela
já viu alguma coisa parecida antes. Alice conhece os perigos de tirar
conclusões apressadas ou de ser seduzida por primeiras impressões, mas não consegue
evitar pensar no dono daquela fivela, morto há tanto tempo, e que pode ter
andado por aqueles mesmos caminhos. Um desconhecido cuja história ela ainda
precisa descobrir. A conexão é tão forte e Alice está tão entretida que não
percebe a pedra se mexendo na sua base. Então alguma coisa, algum sexto
sentido, a faz olhar para cima. Por uma fracção de segundo, o mundo parece
estar suspenso, fora do espaço, fora do tempo. Ela fica inteiramente hipnotizada
pelo pedaço de rocha antiquíssimo que balança, se inclina, e então,
graciosamente, começa a cair na sua direcção. No último instante, a luz muda. O
feitiço se rompe.
Alice se joga para longe, meio se
arrastando, meio escorregando de lado, bem a tempo de evitar ser esmagada. A pedra
bate no chão com um baque surdo, levantando uma nuvem de pó marrom claro,
depois sai rolando, como em câmera lenta, até parar mais abaixo na
montanha. Alice se agarra desesperadamente aos arbustos e à vegetação rasteira
para evitar escorregar mais. Por um instante, fica estendida no chão, tonta e
desorientada. Quando percebe que só não foi esmagada por um triz, seu corpo congela.
Foi por pouco, pensa. Respira fundo. Espera o mundo parar de girar. Aos poucos,
o latejar na sua cabeça diminui. O enjôo passa e tudo começa a voltar ao
normal, o suficiente para ela poder se sentar e avaliar a situação. Seus
joelhos estão esfolados e riscados de sangue, e ela bateu com o pulso ao cair
de mau jeito, ainda segurando a fivela na mão para protegê-la, mas no geral
escapou ilesa a não ser por alguns cortes e hematomas. Não me machuquei.
Ela se levanta e sacode a poeira
do corpo, sentindo-se uma completa idiota. Não consegue acreditar que cometeu um
erro tão elementar quanto não escorar a pedra. Então Alice lança um olhar para
a sede da escavação lá em baixo. Fica espantada, e aliviada, ao constatar que ninguém
no acampamento parecer ter visto nem ouvido nada. Levanta a mão e está prestes
a gritar para atrair a atenção de alguém quando percebe uma estreita abertura visível
no flanco da montanha onde antes estava a pedra. Como uma porta escavada na
rocha. Dizem que essas montanhas são coalhadas de passagens e cavernas
escondidas, de modo que ela não fica surpresa. Porém, pensa Alice, de alguma
forma ela sabia que a porta estava ali, embora não seja possível vê-la do
exterior. Ela sabia. Na verdade, eu adivinhei, diz a si mesma. Ela hesita.
Alice sabe que deveria chamar alguém para entrar com ela. É estúpido, e talvez
até perigoso, entrar sozinha sem nenhum tipo de apoio. Ela sabe todas as coisas
que podem dar errado. Mas, de todo modo, não deveria estar trabalhando ali em
cima sozinha. Shelagh não sabe. E, além disso, algo a está atraindo lá para
dentro. Parece pessoal. Aquela descoberta é sua. Alice diz a si mesma que não
faz sentido incomodar o grupo, aumentar suas expectativas sem motivo. Se houver
alguma coisa que valha a pena investigar, então ela contará a alguém. Não vai
fazer nada. Quer apenas olhar. Vai levar só um minuto». In Kate Mosse, Labirinto, Editora
Suma de Letras, 2006, ISBN 978-857-302-768-6.
Cortesia de ESumafrLetras/JDACT
JDACT, Kate Mosse, Literatura, Cátaros, Languedoc,