(…) Estávamos diante de outra pessoa, esclarecia Burot, que não recordava nada daquilo que era um instante antes. Num dos seus estados, Louis era abstémio e no outro, tornava-se até inclinado à embriaguez. Note-se, dizia Bourru, que a força magnética de uma substância age inclusive a distância. Por exemplo, sem que o indivíduo saiba, coloca-se em baixo da sua cadeira uma garrafinha que contenha uma substância alcoólica. Nesse estado de sonambulismo, ele mostrará todos os sintomas da embriaguez. O senhor compreenderá que nossas práticas respeitam a integridade psíquica do paciente, concluía Burot. O hipnotismo faz o indivíduo perder a consciência, ao passo que, com o magnetismo, não há comoção violenta sobre um órgão, mas uma carga progressiva dos plexos nervosos. Daquela conversa, extraí a convicção de que Bourru e Burot eram dois imbecis que atormentavam pobres dementes com substâncias urticantes, e fui confortado na minha certeza ao ver o doutor Du Maurier, que da mesa vizinha acompanhava a conversa, balançar a cabeça várias vezes. Caro amigo, disse-me ele dois dias depois, tanto Charcot quanto os nossos dois de Rochefort, em vez de analisarem o que seus pacientes viveram e de se perguntarem o que significa ter duas consciências, só se ocupam da possibilidade de agir sobre eles com o hipnotismo ou com barras de metal. O problema é que, em muitos indivíduos, a passagem de uma personalidade à outra ocorre espontaneamente, de modos e em momentos imprevisíveis. Poderíamos falar de auto-hipnotismo. Na minha opinião, Charcot e seus discípulos não reflectiram o suficiente sobre as experiências do doutor Azam e sobre o caso Félida. Ainda sabemos pouco sobre esses fenómenos; o distúrbio de memória pode ter por causa uma diminuição do aporte de sangue a uma parte ainda desconhecida do cérebro, e o restringimento momentâneo dos vasos pode ser provocado pelo estado de histeria. Mas onde falta o afluxo de sangue nas perdas de memória? Onde falta? Esse é o ponto. O senhor sabe que nosso cérebro tem dois hemisférios. Portanto, podem existir indivíduos que ora pensam com um hemisfério completo e ora com um incompleto, no qual falta a faculdade da memória. No momento, tenho na clínica um caso muito semelhante ao de Félida. Uma jovem de pouco mais de 20 anos, chamada Diana. Aqui Du Maurier se deteve um instante, como se temesse confessar algo reservado.
Uma parenta me confiou a jovem
para tratamento, dois anos atrás, e depois morreu, obviamente deixando de pagar
a mensalidade, mas o que eu devia fazer? Jogar a paciente na rua? Sei pouco
sobre seu passado. Segundo suas narrativas, parece que desde a adolescência, a
intervalos de cinco ou seis dias, ela começou a sentir, depois de uma emoção,
dores nas têmporas e, em seguida, caía numa espécie de sono. Na realidade, o
que ela chama de sono são ataques histéricos: quando acorda, ou quando se
acalma, está muito diferente do que era antes; isto é, entrou naquilo que já o
doutor Azam chamava de condição segunda. Na condição que definiremos como normal,
Diana se comporta como adepta de uma seita maçónica... Não me entenda mal, eu
também pertenço ao Grande Oriente, ou seja, à maçonaria das pessoas de bem, mas
talvez o senhor saiba que existem várias obediências de tradição templária, com
estranhas propensões para as ciências ocultas, e algumas dessas são periféricas,
naturalmente, por sorte se inclinam a ritos satânicos. Na condição que
infelizmente é preciso definir como normal, Diana se considera adepta de Lúcifer
ou coisas do género, faz discursos licenciosos, conta episódios lúbricos, tenta
seduzir os enfermeiros e até a mim; lamento dizer uma coisa tão embaraçosa, até
porque Diana é aquilo que se considera uma mulher atraente». In
Umberto Eco, O Cemitério de Praga, Biblioteca Digital, Editora Record, tradução
de Joana Melo, 2011, ISBN 978-850-109-284-7.
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