«(…) Inclinaríamos a cabeça pontuando as vozes umas das outras, a indicar que sim, sabemos tudo sobre o assunto. Falaríamos dos nossos tratamentos e tentaríamos ultrapassar-nos umas às outras no recital de desgraças físicas; queixar-nos-íamos suavemente, em voz baixa em tom menor e queixosas como pombos nas caleiras dos beirais. Sei muito bem o que queres dizer, diríamos. Ou a expressão pitoresca que às vezes ainda se ouve da boca dos velhos Estou mesmo a ver aonde queres chegar, como se a própria voz fosse um viajante vindo de longe. O que ela era mesmo. O que ela é. Como eu detestava essas conversas. Agora anseio por elas. Pelo menos, era conversa. Uma troca de pouco valor. Ou falávamos de bisbilhotices. As Martas sabem coisas, falam entre elas, passam as novidades oficiosas de casa em casa. Tal como eu, escutam às portas, sem dúvida, e vêem coisas até de olhos fechados. Já as ouvi por vezes a fazerem-no, apanhei um cheirinho das suas conversas privadas. Nado-vivo, era o que era. Ou: Espetou-lhe uma agulha de tricô mesmo na barriga. Ciúmes, deve ter sido, a consumi-la. Ou, a espicaçar: foi o produto para limpar as sanitas que ela usou. Funcionou que nem uma maravilha, se bem que não se percebe como é que ele não lhe sentiu o gosto. Deve ter sido aquele bêbado; mas lá que a apanharam, apanharam.
Ou então eu ajudaria a Rita a
fazer pão, mergulhando as mãos naquele calor suave e resistente que tanto
lembra a carne. Estou sedenta de tocar em alguma coisa que não seja tecido ou
madeira. Estou sedenta de cometer o acto do toque. Mas mesmo que pedisse, mesmo
que eu violasse o decoro até esse ponto, a Rita não o permitiria. Teria
demasiado medo. As Martas não devem confraternizar connosco. Confraternizar
significa agir como um irmão. Foi o Luke quem mo ensinou. Disse que não havia
um termo correspondente para agir como uma irmã. Teria de ser consororizar,
disse ele. Do latim. Ele gostava de saber pormenores desses. As derivações das
palavras, usos curiosos. Eu costumava meter-me com ele dizendo-lhe que era um
pedante. Pego nas senhas que estão na mão estendida da Rita. Têm imagens das
coisas pelas quais podem ser trocadas: doze ovos, um pedaço de queijo, uma
coisa castanha que é suposto ser um bife. Enfio-as no bolso com fecho de correr
da minha manga, onde guardo o passe. Pede-lhes frescos, os ovos, diz ela. E não
como da última vez. E um frango, diz-lhes, não uma galinha. Diz-lhes para quem
são para eles não se porem com coisas. Está bem, digo eu. Não sorrio. Para quê
tentá-la à amizade?
Saio pela porta das traseiras,
para o jardim, que é grande e cuidado: um relvado ao centro, um salgueiro, um
chorão; a toda a volta, a moldura de flores, na qual os narcisos estão a
esmorecer e as tulipas a abrir as suas corolas, espalhando cor. As tulipas são
vermelhas, com um púrpura mais escuro ao aproximar-se do caule; como se
tivessem sido cortadas e estivessem a começar a sarar nesse ponto. Este jardim é
o domínio da Esposa do Comandante. Vi-a nele muitas vezes ao olhar pela minha
janela de vidro inquebrável, ajoelhada numa almofada, um véu azul-claro por
cima do chapéu de jardinagem largo, um cesto ao seu lado com aparas lá dentro e
pedaços de cordel para atar as flores na posição certa. Um Guardião destacado
para o Comandante faz os trabalhos de cavar pesados; a Esposa do Comandante dá
as indicações apontando com a bengala. Muitas das Esposas têm jardins assim, é
algo para elas porem em ordem, manterem e cuidarem. Em tempos tive um jardim.
Ainda me lembro do cheiro da terra remexida, as formas arredondadas dos bolbos
na mão, plenitude, o roçagar seco das sementes por entre os dedos. O tempo
podia passar mais ligeiro dessa forma. Às vezes, a Esposa do Comandante pede
que lhe levem uma cadeira lá para fora e fica simplesmente ali sentada, no seu
jardim. A distância, é a imagem da paz. Não está aqui agora e eu começo a
pensar onde estará: não gosto de me cruzar inesperadamente com a Esposa do
Comandante. Talvez esteja a coser, na sala de estar, com o pé esquerdo em cima
do escabelo, por causa da artrite. Ou a tricotar cachecóis para os Anjos que
estão nas trincheiras». In Margaret Atwood, A História de uma Serva,
1985, Bertrand Editora, 2013, ISBN 978-972-252-577-0.
Cortesia de BertrandE/JDACT
JDACT, Margaret Atwood, Literatura, Crónica,