«(…) Mantém-se ali um espelho, na parede do corredor. Se virar a cabeça de modo que as abas brancas que me emolduram o rosto orientem a minha visão para ele, consigo vê-lo enquanto desço as escadas, redondo, convexo, um espelho de pendurar, como um olho de peixe, e eu nele como uma sombra distorcida, uma paródia de alguma coisa, uma figura de conto de fadas com um capuz vermelho, a descer para um momento de descuido que é sinónimo de perigo. Uma Irmã, imersa em sangue. Ao fundo das escadas, há uma chapeleira de pé alto, das de madeira curvada, com braços compridos e arredondados de madeira que se curvam delicadamente para cima em ganchos com a forma das frondes jovens dos fetos. Contém vários chapéus-de-chuva: preto, para o Comandante, azul, para a Esposa do Comandante, e aquele que me é destinado a mim, vermelho. Deixo o chapéu vermelho onde está, porque sei pela janela que o dia está soalheiro. Pergunto-me se a Esposa do Comandante estará ou não na sala de estar. Nem sempre se senta. Às vezes, ouço-a a andar de um lado para o outro, um passo pesado e depois outro leve, e a pancada suave da bengala na carpete rosa-velho.
Atravesso o corredor, passo pela
porta da sala de estar e pela porta que dá para a sala de jantar, abro a outra
ao fundo do corredor e entro na cozinha. Aqui, o cheiro já não é de mobília
encerada. Está lá a Rita, de pé junto da mesa da cozinha, cujo tampo é de
esmalte branco lascado. Está com o seu habitual vestido de Marta, que é de um
verde pálido, como a bata de um cirurgião de tempos passados. O vestido assemelha-se
muito ao meu na forma, é comprido e ocultador, mas com um avental de corpo
inteiro por cima e sem as asas brancas e o véu. Coloca o véu para sair, mas
ninguém se importa que se veja a cara de uma Marta. Tem as mangas arregaçadas
até ao cotovelo, revelando os braços castanhos. Está a fazer pão, a atirar as
bolas para o breve amassar final e depois lhes dar forma. Rita vê-me e acena, é
difícil dizer se para me saudar ou simplesmente como reconhecimento da minha
presença, limpa as mãos enfarinhadas ao avental e vasculha a gaveta da cozinha à
procura do bloco das senhas. De sobrolho carregado, destaca três senhas e entrega-mas.
O seu rosto podia ser simpático se sorrisse. Mas o sobrolho carregado não é uma
coisa pessoal: é o vestido vermelho que ela censura, e aquilo que ele
representa. Julga que eu posso ser contagiosa, como uma doença ou uma espécie
qualquer de azar. Às vezes ponho-me à escuta atrás das portas, coisa que nunca
teria feito noutros tempos. Nunca fico à escuta por muito tempo, porque não
quero ser apanhada. Porém, ouvi certa vez a Rita dizer à Cora que nunca se
rebaixaria assim. Ninguém te perguntou nada, disse Cora. E além do mais, o que é
que podias fazer, se isso acontecesse?
Ir para as Colónias, disse Rita.
Elas têm essa alternativa. Com as Não-Mulheres, e morrer de fome e sabe Deus
mais o quê?, disse Cora. Agora apanhei-te. Estavam a descascar ervilhas; mesmo
com a porta quase fechada, eu ouvia o leve tilintar das ervilhas duras a caírem
na tigela metálica. Ouvi à Rita um resmungo ou suspiro, de protesto ou concordância.
De qualquer das maneiras, fazem aquilo pelo bem de todos, disse Cora, ou pelo
menos é o que se diz. Se não me tivessem tirado os ovários, podia ter sido eu,
se fosse, digamos, uns dez anos mais nova. Não é assim tão mau. Não se pode
dizer que seja um trabalho duro. Antes ela que eu, disse Rita, e eu abri a
porta. As suas expressões eram as de mulheres que estiveram a falar de alguém
pelas costas e acham que foram ouvidas: envergonhadas, mas também um pouco desafiantes,
como se estivessem no seu direito. Nesse dia, a Cora foi mais simpática comigo
do que o habitual; a Rita, mais antipática. Hoje, apesar do rosto fechado da
Rita e dos seus lábios cerrados, gostaria de ficar ali, na cozinha. A Cora
podia entrar, vinda de outra parte da casa, com a garrafa de óleo de limão e o
pano do pó, e a Rita faria café, nas casas dos Comandantes, continua a haver
café a sério, e sentar-nos-íamos à mesa da cozinha da Rita, que pertence tanto à
Rita quanto a minha mesa a mim, e conversaríamos, de dores e pontadas, doenças,
os nossos pés, as costas, toda a espécie de maldades que os nossos corpos, como
crianças rebeldes, nos pregam». In Margaret Atwood, A História de uma Serva,
1985, Bertrand Editora, 2013, ISBN 978-972-252-577-0.
Cortesia de BertrandE/JDACT
JDACT, Margaret Atwood, Literatura, Crónica,