«(…) Como é que consegue viver sozinho num chavasco destes? o advogado caro de cabelo cortado num barbeiro caro que me recebeu num gabinete caro com quadros caros encadernações caras em estantes caras a mulher cara e os filhos caros a sorrirem numa moldura de prata e mobília quase tão cara como a mobília do meu pai, o advogado a fingir não reparar no pedaço de corda que me servia de cinto, nos sapatos sem graxa, nas peúgas sem elástico, nas calças gastas, a observar-me no desdém aborrecido com que a minha sogra me observou quando entrei pela primeira vez a derrubar bibelots, envergonhadíssimo, no palacete do Estoril, a minha sogra que jogava bridge com as cunhadas a recolher a vasa numa combustão de anéis e a erguer para mim a sobrancelha que se mostra ao jardineiro incompetente culpado de estragar os buxos do terraço O menino tem dinheiro para manter a Sofia ao nível a que ela está habituada? o advogado incomodado com o meu casaco demasiado curto, os meus fundilhos, o meu bigodinho cómico, a brincar com a lapiseira de prata numa nuvem de after-shave e a tentar ao mesmo tempo desembaraçar-se do assunto e ser simpático para a minha filha Vamos a ver o que se pode arranjar senhor engenheiro não prometo nada e ao ir-me embora a telefonista mirou-me como se eu fosse testemunha de Jeová ou vendesse enciclopédias e a minha filha mais velha a remexer as gavetas da cozinha onde as cuecas se misturavam com os talheres (os garfos tortos as colheres com verdete as facas que não cortavam) Não tem ao menos um fatinho decente? e a Sofia a escovar-me os ombros com o dorso da mão Podias arranjar-te um bocadinho para conhecer a minha mãe e a minha sogra a esquecer-se das cartas assim que despenhei um candeeiro de globo O menino é parvo ou faz-se? eu no tribunal em Lisboa escoltado pelo advogado que batia no relógio com a unha, a lembrar-me das pás do moinho escurecidas de ferrugem que cessaram de trabalhar apesar do vento, dos canis vazios e dos lobos da alsácia sem comida galopando ao acaso pela serra ou a uivarem do pântano no momento em que uma funcionária começava a soletrar nomes marcando os que respondiam com uma cruzinha a lápis, a lembrar-me de quando levei a minha noiva à quinta em Agosto e o meu pai se achava no pátio numa cadeira de baloiço a beber limonada com a mulher do sargento, dama de cetins barrocos que tomava a camioneta de Setúbal nas tardes em que o marido ficava de plantão no quartel e eu para o meu pai A Sofia pai e o meu pai a mirá-la com a pálpebra adormecida com que mirava a cozinheira a filha do caseiro as ciganas as criadas, a afundar a copa na testa com um piparote Faz tudo o que ela quiser mas nunca tires o chapéu da cabeça para que se saiba quem é o patrão e o advogado inquieto mostrando-me o relógio O que terá acontecido à sua esposa?
a Sofia a ajeitar a bandelete
corada de timidez, os corvos a gargalharem nas faias, o reflexo da casa a
estremecer na piscina, a mulher do sargento a sorrir para nós caretas de madrinha,
o meu pai a medir a Sofia, na voz distraída com que falava dos animais no estábulo
Um cabide um esqueleto nunca percebeste nada de vitelas e o advogado de repente
sereno, de repente grave, a endireitar-se para o elevador compondo os punhos Até
que enfim senhor engenheiro e lá estava a Sofia sem bandelete sem vinte anos
sem corar de timidez sem me escovar os ombros com o dorso da mão, flanqueada
por um advogado tão semelhante ao meu que se diria o mesmo ao espelho, que se
diriam réplicas, gémeos, ambos de cabelo cortado num barbeiro caro, ambos de cheviotes
por medida, ambos seguros autoritários severos, flutuando na mesma loção de
barbear numa majestade de congros, a Sofia com o anel da minha sogra no dedo da
aliança, com a desenvoltura desdenhosa da mãe (O menino é parvo ou faz-se?) sem
me olhar sem me sorrir sem me dizer Podias arranjar-te um bocadinho João e eu
para o meu advogado igual ao advogado dela» In António Lobo Antunes, O Manual
dos Inquisidores, 1996, Publicações Dom Quixote, Grupo Leya, 1996, ISBN
978-972-204-234-5.
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