Brasil
«(…) Em Vila Rica
descobriram, da janela do sótão do palácio, montes que se perdiam no horizonte
e lhes lembravam o Minho e jardins onde viam meninos como eles a correrem seguidos
pelos moleques, filhos de escravos que acompanhavam os senhozinhos nas brincadeiras. À hora do beija-mão, o mais velho dos irmãos
pediu licença ao pai para falar, incitado pelos outros que esperavam ansiosos
pela resposta, e perguntou se a eles também lhes seria permitido entreterem-se
da mesma maneira que os meninos brasileiros. Rodrigo Meneses, tomado de
surpresa, não soube o que dizer. Preferiu evitar dar o seu consentimento a algo
de que mais tarde pudesse arrepender-se e adiou para outro dia a resposta, pois
não conhecia ainda os costumes do país e queria aconselhar-se com alguém que
lhe pudesse dar uma opinião. Não deixou de lhes lembrar que não eram meninos
nascidos num berço qualquer, eram netos do marquês de Marialva e filhos do
governador de Minas Gerais e deviam comportar-se como tal. Ao cabo de alguns
dias, deu-lhes, porém, licença para brincarem como os outros e as crianças
ficaram contentes por poderem experimentar um modo mais alegre e mais livre de
viver.
Os pequenos Meneses
trocaram a roupa justa e aperaltada, que só voltava a sair dos baús nos dias de
missa e de festa, por outras mais leves, que lhes permitiam mexerem-se à
vontade, e adaptaram-se rapidamente a um ritmo que tinha mais a ver com o
percurso do Sol, o vento fresco dos montes e as chuvas. Partiam à descoberta
desse mundo novo ao raiar do dia, os rapazes seguidos cada um do seu moleque,
Eugénia acompanhada por uma pretinha poucos anos mais velha do que ela, chamada
Miló, que se prestava tão bem a todas as brincadeiras que pareciam ter a mesma
idade. Maria José agradecia a Deus poder ver da janela do seu quarto os filhos
jogarem à apanhada entre as árvores, porque ainda amamentava o bebé que tinha
nascido no barco e o seu ventre já se arredondava outra vez. Mesmo obedecendo à
regra de abstinência sexual nos dias santos e na Quaresma, o calendário ainda
lhes permitia muitos dias de liberdade e as consequências não demoravam a
aparecer à vista de todos. Logo que se apercebia do seu estado, entregava o
molho de chaves à velha criada para evitar que a criança nascesse com lábio leporino
e guardava os fios e os brincos numa caixa própria. Assim, as marcas que as
joias lhe deixavam nas orelhas e no pescoço não passariam para a pele do recém-nascido.
Na viagem de barco
contentara-se com uma ração dupla de biscoitos enquanto estivera grávida,
porque não podia pedir o impossível. Mas em terra aproveitou o seu estado
interessante para exigir ao marido que mandasse vir do Rio de Janeiro todas as
coisas que escasseavam em Vila Rica, com o pretexto dos inevitáveis desejos.
Fez uma longa lista e, pouco tempo depois, viu a despensa encher-se de presunto
do reino, vinho do Dão, ameixas secas, amêndoas, sidra, conservas de damascos e
de ginjas, uvas frescas e maçãs pequenas. O governador lembrou-se de
acrescentar umas tigelas de manteiga para barrar o pão cozido em forno de
lenha, que um padeiro português instalado no Rio confeccionava para os que
podiam matar as saudades estomacais. Foi o próprio Rodrigo que entrou na
salinha onde a mulher passava as tardes, seguido de uma criada com um tabuleiro
contendo a surpresa, que Maria José agradeceu de boca cheia, porque não
resistiu à tentação de comer imediatamente um naco de pão barrado com a insólita
manteiga.
O calor e algumas moléstias obrigaram-na a ficar de cama no último
mês de gravidez e, quando começaram as primeiras contracções, vieram ao seu
quarto cinco mulheres para lhe darem assistência durante o parto. Uma delas
trazia as Tábuas da Lei para colocar no travesseiro, outra umas tesouras bentas
que deviam ficar debaixo da cama durante o nascimento, a terceira uma taça com
caldo feito com penas de perdiz, que Maria José teve de beber dissimulando o nojo
que o sabor lhe causava. Entretanto, as restantes começaram a rezar o credo em
voz alta e, quando as dores se tornaram menos suportáveis, todas começaram a
gritar e a futura mãe com elas, como se não resistisse a fazer parte do coro de
lamentos, não tanto porque sentisse rasgarem-se as suas entranhas, mas mais
para cumprir com a obrigação de dar à luz com dor, que era como Eva tinha
parido. Assim nasceu Isabel, a segunda menina, que foi logo lavada, enfaixada e
vestida com camisas de rendas e fitas. Antes de sair nos braços da madrinha
para ser imediatamente baptizada, a mãe passou-lhe pela cabeça um fio de algodão
grosso com uma medalha e um escapulário para a proteger do mal. Maria José,
cansada pela representação teatral do parto doloroso, quando era capaz de
deitar os filhos ao mundo sem mais ajuda do que as orações, dormiu até à manhã
seguinte». In
Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN
978-989-231-047-3.
Cortesia de OdoLivro/JDACT
Cristina Norton, Escrita, JDACT, Literatura, Narrativa, MLCT, MLAC,