«(…) Eram deidades universalistas que haviam sofrido e vencido a morte, que recordavam a fecundidade agrária, renovando todos os anos a vegetação, e sugeriam o renascimento, indo assim ao encontro de muitas das inquietações dos espíritos sedentos de uma nova verdade. Enquanto reflectia nestas questões, Lucídio constatava que o diálogo a que involuntariamente assistia terminara crispado, saindo o desconhecido disparado, de rosto apimentado e a respingar fúrias por todos os poros. Depois da sua alvíssima toga de linho ter deixado um torvelinho à saída, surgiu o roliço dono da casa, não menos arreliado do que aquele que acabava de sair.
Já cá estás e ninguém me avisou?!,
questionou de supetão, com a saliva a borbulhar nos cantos dos lábios. Lamento
não ter sido anunciado, Ithacio, respondeu Lucídio, com a melhor cortesia que conseguiu
encontrar. Vamos, entra!, ordenou, com arquejante respiração. Já estou atrasado
para as minhas termas, resolveu, apontando para uma cadeira, debaixo de um
quadro de peixes pintado na parede. Então, qual é a urgência, Ithacio?! Pensei
que tínhamos esclarecido tudo na última reunião… Sim, sim… Mas, como sabes, os
impostos não me são destinados, pertencem ao império. Apenas cumpro as funções
que o Estado romano me confia, respondeu, ainda rubicundo, sentando-se
pesadamente no cadeirão. Não discordo, os impostos fazem falta à manutenção do
Estado e bem sei que o esforço de guerra com os bárbaros cresce de dia para
dia. Lucídio tossicou, aclarando a voz e respirando fundo para se aquietar. Mas
apenas os impostos legais e devidos, Ithacio! Já nos bastam os que temos, e não
são assim tão poucos! Sete sólidos de ouro por cada caput é uma magnânima contribuição para o império! Deixa-te
de lamúrias e vamos directos ao que interessa! Mandei homens a Aseconia verificar
os limites das tuas terras e parece que se confirmam. Então, qual é o
problema?!, perguntou o convidado, olhando nos olhos de Ithacio. O anfitrião
sorriu, mordaz. Relataram-me que não declaraste a totalidade da produção anual…
Lucídio engoliu em seco. Considerava aquela afirmação um ultraje, uma autêntica
infâmia. Como poderia aquele homem
duvidar da sua palavra?! Procurou manter a calma dos aristocratas de
boa cepa, escondendo o mais que pôde o remoinho que lhe virava as tripas do avesso.
Não pode ser, Ithacio! As contas foram feitas na presença dos teus caesariani… Não é o que me dizem…,
contestou o anafado homem, com lentidão, como que procurando estudar o espírito
e as reacções do dono da Villa Aseconia. Atestam que viram cereais que não
estavam no lote e no local onde foram anteriormente medidos… Foi nesse preciso
local que os teus fiscais os viram, colocados após a primeira contagem! Não
podiam continuar sujeitos ao tempo… E já vês como está este Inverno! Não vou
pagar nem mais um argenteolus,
ou mesmo um mísero denarius
de bronze que seja!, contestou Lucídio, furioso. O outro, com um estranho
ar de caso, puxou o assento para junto de Lucídio, olhou para todos os lados e
falou-lhe ao ouvido, num tom estudadamente baixo: ouve cá, isto é o que tinha
inicialmente para te dizer. Mas acaba um passarinho de me soprar ao ouvido que
os membros da tua querida família andam pelos montes a praticar magia… Magia?! Lucídio
esbugalhou os olhos e o coração estremeceu. Sim, mas não uma magia qualquer! Ithacio
recostou-se no seu lugar, fitando-o nos olhos. Magia negra!, afirmou,
aumentando a voz e alongando as palavras. Sabes bem que esse é o crime que o
nosso estimado imperador mais detesta! Mentira! Como és capaz de tão monstruosa
insinuação?! Os teus delatores mais uma vez se enganaram!
O cobrador de impostos sorria,
com gosto, gozando antecipadamente o susto da visita. Vai com cuidado, amigo! A
tua dilectíssima esposa é a responsável por isso! A terra tremeu sob os pés de
Lucídio. Como era possível, e com que fim, aquele homem acusar Priscila de tão
grave delito?! E logo ela, coitada, tão atarefada com os preparos para o parto!
Desviou os olhos para um recanto da sala ricamente pintada, onde se encontravam
duas ânforas e peças de louça de cerâmica da mesma oficina africana que as de
sua casa. O peito arfava, congestionado como os olhos. Recordou a imagem de
Priscila e não duvidou uma fração de tempo que a amava e que não era a paixão
que lhe toldava a razão. Aquele homem não podia dizer a verdade! Mirou-o de
novo. A gula reluzia nas bochechas de Ithacio, agora lustradas pelo rubor da soberba.
Impotente, amaldiçoou-o e à sua malvadez. Até que, no meio do vórtice do vulcão
onde se via, pressentiu uma energia interior que o ajudava a fugir da lava que
o afogueava. Lembrou-se dos dois homens da sua clientela que se encontravam na domus para o levarem para
Aseconia. Talvez o pudessem ajudar a esclarecer a maldita acusação. Posso
chamar aqui os meus criados que acabaram de chegar a Bracara? O redondo homem
remexeu-se no cadeirão, repuxou-o para o lugar inicial, semicerrou os olhos e
anuiu com a cabeça, para logo sublinhar: podes, claro que sim! Espero que sejam
úteis às tuas decisões…» In Alberto S. Santos, O Segredo de
Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, A Escrita, Alberto S. Santos, Galiza,