«(…) E, assim sentenciado, saiu da sala, alegando ter de mudar de roupa para ir a banhos, logo a seguir. Enquanto esperava que o escravo de Ithacio levasse a ordem de chamada a Flaviano e a Arménio, Lucídio espreitava a janela do seu mundo interior e o que via não lhe agradava minimamente. O chão continuava perigosamente a estremecer. A lava ainda lhe queimava os pés. Nunca dera oportunidade alguma para poder ser atacado por quem quer que fosse. Ele e a sua família eram gente séria e honesta e orgulhava-se disso. Eram apreciados pela generalidade da clientela de Villa Aseconia, fossem colonos, escravos e toda a espécie de criadagem, apenas Arménio parecia a excepção, que o patrão, não obstante, desconhecia, e por todos os prestigiados proprietários da Galécia, pelos membros do senado bracarense, pelo governador… Só os cristãos poderiam ter razões para desapreciarem Lucídio, pois menosprezavam todos os que se mantinham fiéis às tradições dos antepassados, fossem romanos de cepa, fossem os descendentes das tribos galaicas e lusitanas que habitavam o ocidente peninsular antes de chegar a civilização nascida nas margens do Tiberis. Aqui estão os teus homens!, informou Ithacio, que irrompeu sala adentro, embargando-lhe as cogitações. À tua disposição! Lucídio notou ironia e até uma pontada de desdém, sobretudo na forma como entoava as palavras e mirava o proprietário da villa do conventus lucensis. Logo saiu para os deixar a sós.
Meus caros, Ithacio insinua uma
terrível acusação contra a minha família… Parou para escolher as palavras e
tomou os rostos de Flaviano e de Arménio com firmeza, explicando o teor da denúncia.
Os dois entreolharam-se. Mas logo o chão de mosaico se tornou o destino de
todas as atenções. Era visível a perturbação que os apoquentava. O que se
passa?! O que quer dizer o vosso silêncio…?! Senhor…, não sei do que falais…,
começou Flaviano, intermitente. Do que vos expliquei! O assunto é sério! Tendes
conhecimento de algum acto de magia negra, ou de algo semelhante, praticado por
Priscila? O silêncio tapou de novo as bocas dos clientes de Lucídio. Os três
homens ficaram, durante algum tempo, suspensos entre si, sem que nenhum
quebrasse o mutismo. Formavam um triângulo, em cuja ponta do vértice mais agudo
se encontrava o senhor, a ferver de desconfiança quanto à interpretação que
podia dar a tão ruidoso vazio. Os dois criados posicionados nos vértices da
base mais curta do trilátero experimentavam os dramas que a consciência de cada
um era capaz de elaborar, como uma aranha que tece a teia, retirando do interior
os fios em que haverá de renascer. Contudo, só um deles deu a conhecer os demónios
que os atormentavam: senhor, começou, titubeante, a minha consciência cristã,
porque nunca lhe escondi a minha crença, não me permite mentir ou omitir
perante uma tão clara pergunta, que é do meu directo conhecimento… Arménio!,
resmungou Flaviano. Então, o que aconteceu…!?, interrompeu Lucídio, com gotas
de suor a escorrerem-lhe das têmporas, apesar da frescura do dia. O que me
queres dizer?! Depende da perspectiva, mas talvez seja verdade, senhor, o que
esse homem vos informou… Lucídio caiu na cadeira, como se houvesse sido
fulminado por uma flecha, pelas costas». In Alberto S. Santos, O Segredo de
Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.
JDACT, A Escrita, Alberto S. Santos, Galiza,