quarta-feira, 29 de setembro de 2021

El Caballero de Alcántara (O Cavaleiro de Alcântara). Jesús Sánchez Adalid. «Los perros ladraban al ruido de mis pasos. Cantaban los gallos. Los campesinos salían a sus labores y las campanas llamaban a misa de alba»

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«(…) Permanecí en aquel puerto y cuartel el tiempo necesario para reponer fuerzas y verme sano de cierta debilidad de miembros y fiebre que padecía. Valiéndome también este reposo para solicitar de Su Majestad que librara orden al Consejo de la Suprema y General Inquisición y que se me tuviera por exonerado, siendo subsanada mi honra y buen nombre de cristiano en los Libros de Genealogías y en los Registros de Relajados, de Reconciliados y de Penitenciarios, para que no sufriera perjuicio alguno por las acusaciones a que fui sometido por ser tenido como renegado y apóstata. Hicieron al respecto los secretarios del rey las oportunas diligencias y, sano de cuerpo y subsanado de alma, me puse en camino a pie para peregrinar al santuario de Nuestra Señora de Guadalupe, como romería y en agradecimiento por la gracia de haberme visto libre de tantas adversidades.

Cumplida mi promesa, retorné felizmente a Jerez de los Caballeros, a mi casa, donde tiene su inicio la historia que ahora escribo, obedeciendo al mandado de Vuecencia, por la sujeción y reverencia que le debo, mas no por hacerme memorable, y para mayor gloria de Dios Nuestro Señor; pues la fama y grandeza humanas de nada valen, si no es como buen ejemplo y guía de otras vidas. Harto consuelo me da saber el bien que asegura Vuecencia que ha de hacer a las almas esto que ahora escribo. Plega a Dios se cumpla tal propósito. De Vuestra Excelencia indigno siervo.

Amanecía débilmente cuando alcancé a ver las torres y campanarios de mi amada ciudad. Había yo caminado durante toda la noche para evitar el calor, por senderos que desdibujaban las sombras, y me pareció que nacía el sol en el horizonte para alumbrar la hermosura de Jerez de los Caballeros, regalándome con la sublime visión de las murallas doradas y los rojos tejados, en medio de los campos montuosos. Una gran quietud lo dominaba todo. Crucé la puerta que dicen de Burgos y ascendí lentamente por las calles en cuesta. Los perros ladraban al ruido de mis pasos. Cantaban los gallos. Los campesinos salían a sus labores y las campanas llamaban a misa de alba. Los quehaceres cotidianos, ruido de esquilas, martilleo en los talleres, pregoneros y escobone rasgando las piedras de los portales rompían el silencio.

Más de diez años habían transcurrido desde mi partida. Era yo tierno mozo entonces, cuando salí de mi casa, y ahora retornaba hecho un hombre; crecidas las barbas sin arreglo, sucios cuerpo y rostro por el polvo de los caminos y ajadas las ropas tras tan largo viaje. Nadie me reconoció, aunque algunos se me quedaban mirando. Al atravesar los familiares lugares donde pasé la infancia, brotaban en mi alma los recuerdos. Sentí un amago de congoja, por el tiempo dejado atrás y que ya no retornaría. Pero, llegado a la puerta de mi casa, me sacudió un súbito gozo, como si me brotara dentro una fuente que me animaba. Y se me hizo presente la memoria del penoso cautiverio como algo consumado, muy lejano, como si hubiera sido padecido por otra persona, no por mí. La entrañable visión del lugar donde me crié permanecía inalterada, asombrosamente idéntica al día que me marché. Me fijaba en la pared soleada, en los rojos ladrillos de los quicios de las ventanas, en las negras rejas de forja, en los nobles escudos donde lucían, bien cinceladas en granito, las armas de la familia. Golpeé la madera del recio portalón con la aldaba y la llamada resonó en el interior del zaguán, retornando a mí como un sonido profundamente reconocido. Al cabo se oyeron pasos adentro. Una viva emoción cargada de impaciencia me dominaba.

Abrió un muchacho de familiar aspecto. Me miró, y con habla prudente preguntó: Qué desea vuestra merced a hora tan temprana? No se hace caridad en esta casa hasta pasado el mediodía. No pido caridad, respondí sonriente. Vengo a lo que es mío… Me observó circunspecto el zagal y, arrogante, añadió: Si sois peregrino o soldado de paso, habré de ir a preguntar a mi señor padre. Aguardad aquí. Ambas cosas soy, asentí, peregrino y soldado. Aunque no ando de paso, sino que vuelvo a mi casa». In Jesús Sánchez Adalid, El Caballero de Alcántara, 2008, Epulibre, O Cavaleiro de Alcântara, 2008, 2021, HarperCollins Ibérica, 2021, ISBN 978-849-139-511-9.

Cortesia de HCIbéica/JDACT

 JDACT, Jesús Sánchez Adalid, Literatura, Espanha, Século XVI, 

domingo, 26 de setembro de 2021

José Manuel Saraiva. Aos Olhos de Deus. «Era lá também que se situavam o chafariz d’el-rei, o Cais da Pedra e o Pelourinho, onde por vezes se realizavam e quase sempre se cumpriam os autos-de-fé»

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«(…) De velas com a cruz de Cristo já desfraldadas, as naus começaram a afastar-se dos pontões, lentamente, uma de cada vez, alinhadas em direcção à foz do estuário, coberta no horizonte por uma espessa neblina de veludo. E só mesmo quando o último navio se perdeu na linha do oceano a população dispersou do cais. A festa tinha acabado. Lisboa regressava à triste normalidade do seu quotidiano. Inversamente, para a maioria dos marinheiros, sobretudo para os membros da comitiva real, principiava uma aventura emocionante. Em certo sentido, a mais emocionante aventura das suas vidas. Mas antes ainda de as naus mergulharem as quilhas no mar alto, foram todos aos castelos de proa para ver a cidade distante, sobretudo o Cais da Ribeira, transformado já então num ponto ínfimo e obscuro. Era lá o centro cosmopolítico da urbe. Era nele e ao redor dele que se encontravam as casas do poder secular, da riqueza e da justiça: a Casa da Índia, a velha e a nova; a Casa da Suplicação; os Paços da Mina, de Xabregas e de Santos; os armazéns e a alfândega; as casas de mercadores de sobrado; a igreja da Misericórdia; os campos de carreira de fidalgos e dos jogos de péla. Era lá também que se situavam o chafariz d’el-rei, o Cais da Pedra e o Pelourinho, onde por vezes se realizavam e quase sempre se cumpriam os autos-de-fé. Nesse dia, o primeiro de muitas semanas, mareantes e membros da comitiva passaram quase todo o tempo em oração e recolhimento, salvo os mestres-pilotos e os marinheiros cuja tarefa consistia em assegurar o serviço à navegação. E também os grumetes, na maioria adolescentes, destinados à execução dos trabalhos mais pesados. Eram estes, de resto, que limpavam os excrementos dos homens e animais e, nas longas viagens, serviam de objecto de prazer aos tripulantes. Mas dado o carácter sacratíssimo de tão importante empresa marítima, ainda por cima de curta duração, foi desde logo determinado, por exigência do chefe da embaixada, que os pobres grumetes não seriam dessa vez utilizados para outros fins que não os do exclusivo serviço de asseio dos navios. E mais ficou estabelecido: todo o marinheiro que cometesse ou tentasse cometer o pecado da carne contra a natureza seria punido no regresso a Portugal.

Porque no entendimento do chefe da comitiva não era justo nem cristãmente aconselhável que as naus fossem carregadas de animais estranhos e de outros presentes benzidos pelo arcebispo de Lisboa, para oferta a Sua Santidade, e os homens se entregassem no mesmo espaço físico ao consolo do vício. Acima de tudo, Tristão Cunha tinha medo que, naquelas circunstâncias específicas, Deus se arreliasse com algum desvirtuoso marinheiro e, por vingança, fizesse pagar a todos uma pesada pena pela maldade de um só. Sobre o assunto, o comandante da esquadra ainda tentou dissuadir o embaixador da decisão, alegando, antes ainda do embarque, numa conversa em terra a que assistiu Diogo Pacheco, que os grumetes não costumavam reagir mal à vontade rude e arbitrária dos marinheiros. E acrescentou, para reforço da sua argumentação, que os rapazes, salvo os mais novos, os mais frágeis, sobretudo os impúberes, aceitavam o desígnio com bondade. Mas isso é pecado; isso atenta contra a origem do homem feito à imagem de Cristo. Mas é também um hábito que vem de longe, garantiu o oficial.

Com paciência, o embaixador explicou que aquela viagem seria diferente das demais. Eles não iam à descoberta de novas terras, nem sequer pregar na lonjura do mundo a fé de Cristo ressuscitado; iam sim na graça de Deus, protegidos por Deus, levar ao sapientíssimo Papa ricos presentes do venturoso rei português. E se os rapazes se derem aos marinheiros, às escondidas?, insistiu o capitão. Às escondidas!?, admirou-se Tristão Cunha, de cenho carregado. Os pecados não se escondem, atalhou Diogo Pacheco, que até aí havia assistido em silêncio ao diálogo. Deus vê tudo. Mesmo se os pecados forem cometidos pela calada da noite?, perguntou o capitão. Mesmo pela calada da noite e às ocultas, respondeu o chefe da comitiva, agastado com a perserverança do homem. E depois com veemência: Ele está em toda a parte». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.

Cortesia de OdoLivroE/JDACT

JDACT, José Manuel Saraiva, Literatura, Cultura e Conhecimento,

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Notre Dame. Ken Follett. «A Catedral de Notre-Dame era pequena demais em 1163. A população de Paris estava em crescimento. Na margem direita do rio, o comércio crescia a níveis desconhecidos no resto da Europa medieval…»

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2019

«(…) Eu temia que o sol se levantasse sobre uma pilha fumegante de escombros na Île de la Cité, onde a Notre-Dame se erguia repleta de orgulho. Fiquei extremamente emocionado ao ver que a maior parte das paredes ainda estava de pé, assim como o magnífico par de torres quadradas da fachada ocidental. Não havia sido tão ruim quanto o mundo temia, e eu me dirigi ao estúdio de televisão com uma mensagem de esperança. Passei a terça-feira toda dando entrevistas e, na quarta, viajei para Paris a fim de participar de um debate no programa de TV La Grande Librairie sobre o simbolismo das catedrais na literatura e na vida. Para mim, não fazia nenhum sentido ficar em casa. Eu admirava demais a Notre-Dame. Não sou religioso, mas frequento a igreja mesmo assim. Amo a arquitectura, a música, os ensinamentos da Bíblia e a sensação de compartilhar algo profundo com outras pessoas. Já há muito tempo encontro uma enorme paz espiritual nas grandes catedrais, assim como outros milhões de pessoas, sejam crentes ou não. E tenho outro motivo para ser grato às catedrais: meu amor por elas inspirou o romance que é sem dúvida o meu livro mais popular, e talvez o melhor deles.

O presidente Macron disse que a Notre-Dame seria reconstruída em cinco anos. Um jornal francês respondeu com a manchete Macron acredita em milagres. Mas a ligação dos franceses com a catedral é muito intensa. Ela foi palco de alguns dos principais eventos da história francesa. Toda a informação de estrada que diz a que distância se encontra de Paris informa a distância até o Ponto Zero, uma estrela de bronze incrustada no pavimento em frente à Notre-Dame. O grande sino chamado Emmanuel, na torre sul, pode ser ouvido por toda a cidade quando toca o seu profundo fá para anunciar alegria ou tristeza, o fim de uma guerra ou uma tragédia como o 11 de Setembro. Além disso, não é sábio subestimar os franceses. Se existe alguém capaz de empreender essa tarefa, são eles. Antes que eu fosse embora de Paris, minha editora francesa me perguntou se eu cogitava escrever algo inédito sobre o meu amor pela Notre-Dame, à luz do terrível acontecimento de 15 de Abril. Os lucros do livro iriam para o fundo de reconstrução, assim como meus direitos autorais. Sim, respondi. Começo amanhã. Isto é o que escrevi.

1163

A Catedral de Notre-Dame era pequena demais em 1163. A população de Paris estava em crescimento. Na margem direita do rio, o comércio crescia a níveis desconhecidos no resto da Europa medieval, e, na margem esquerda, a universidade atraía estudantes de diversos países. Entre as duas, numa ilha no Sena, ficava a catedral, e o bispo Maurício Sully achava que ela deveria ser maior. E havia algo mais. A construção existente seguia o chamado estilo românico, de arcos redondos, mas havia um novo movimento arquitectónico bastante interessante que usava arcos pontiagudos, permitindo maior entrada de luz, compondo o visual que hoje conhecemos como gótico. Esse estilo tinha sido inaugurado a apenas 10 quilómetros de distância da Notre-Dame, na abadia de Saint-Denis, onde eram sepultados os reis franceses, que combinara de forma brilhante dezenas de inovações técnicas e visuais: além do arco pontiagudo, as colunas eram formadas por um aglomerado de pilastras, das quais brotavam nervuras que seguiam até ao alto tecto abobadado, agora mais leve; uma passarela semicircular na fachada oriental, para fazer com que os peregrinos passassem diante das relíquias de Saint-Denis; e, do lado de fora, graciosos arcobotantes que permitiam a existência de janelas maiores e faziam com que a enorme igreja parecesse prestes a decolar. Maurício devia ter visto a nova igreja de Saint-Denis e se apaixonado por ela. Sem dúvida, ela fazia a Notre-Dame parecer antiquada. Talvez ele estivesse com um pouco de inveja do abade Suger, de Saint-Denis, que havia encorajado sucessivamente dois mestres de obras a fazer experimentações ousadas, com resultados incrivelmente bem-sucedidos. Assim, Maurício ordenou que sua catedral fosse demolida e substituída por uma igreja gótica. Permita-me fazer uma pausa». In Ken Follett, Notre Dame, 2019, Editorial Presença, 2019, ISBN 978-972-236-453-9.

Cortesia de EPresença/JDACT

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sábado, 18 de setembro de 2021

Os Conquistadores de Lisboa. Domingos Amaral 3. «Felino, o imperador perguntou de chofre se ela conhecia as vontades de Egas Moniz e do arcebispo de Braga, João Peculiar»

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 A Intriga de Compostela 1140 - 1142

Arcos de Valdevez, Março de 1141

«(…) Numa pequena clareira, as danças começaram a surgir, seguindo a música dos alaúdes, e a dada altura o imperador dos Cinco Reinos olhou, inquisitivo, para seu primo, que estava ao lado de Chamoa. Com um leve aceno de cabeça, o príncipe de Portugal concedeu-lhe a honra de convidar a amada e Afonso VII levantou-se, sorriu à rapariga e estendeu-lhe a mão direita, incentivando-a a segui-lo. Divertida como sempre foi, Chamoa apanhou a mão do imperador, acompanhando-o até junto dos outros pares dançantes. De sorriso luminoso e boa disposição contagiante, a minha cunhada foi feliz naquele momento e julgou-se o centro das atenções.

Vejam-me, sou a mais bela, até este me quer!

Não era bem assim, não porque ela não fosse uma beldade espantosa, mas porque a maioria dos portucalenses ou já estava bem bebida, ou celebrava aquele dia histórico, alheia ao que se passava junto às fogueiras. Mesmo Afonso Henriques, que sempre fora ciumento, parecia distraído. Nesse momento inesquecível, eu dançava também com a minha Maria, mas não teria reparado se não fosse o gemido desta: Deus me livre, Lourenço Viegas, vede a minha irmã! É certo que Chamoa tinha uma graciosidade única a dançar e o seu corpo movimentava-se com a leveza e o ritmo certos, mas a postura física ultrapassava o admissível numa mulher casada. Ao vê-la abraçada a Afonso VII, enchi-me de dúvidas. Será que amava mesmo Afonso Henriques? Como poderia haver nela tal sentimento, ao mesmo tempo que se moldava de forma tão íntima com o imperador? O que é aquele brilho no olhar dela?, inquietou-se a minha Maria. Senti-me desconfortável, mas também estranhamente seduzido. Ao examinar o duo, reparei na forma instintiva de se enlaçarem, como se fossem uma única entidade dançante. Chamoa tinha o nascer dos seios à mostra e a sua respiração ofegante ainda os realçava mais, esmagados contra a dalmática do imperador, cujos olhos desciam ao longo do pescoço dela, agitados como borboletas atraídas pela luz. E ambos riam e rodopiavam, numa agitação frenética, que os excitava. Como quase sempre, a dança puxava para a cama. Meu Deus, o que está ela a fazer?, perguntou-me Maria. Olhei Chamoa mais intensamente e dei-me conta de que o gozo que a trespassava deixava-a alheia a tudo à volta. Acredito sinceramente que nem se apercebia das ideias erradas que podia estar a criar. Chamoa sempre fora cortejada pelos homens, mas desde que se dedicara a Afonso Henriques parecia ter perdido esse devaneio quase juvenil que a caracterizara, para não desestabilizar o seu amado.

Mas esta noite é minha!

Ali no meio da clareira onde dançava, estava de volta a Chamoa esvoaçante do passado, sempre pronta a ser o alvo preferido dos galanteios dos machos. Como se devia sentir grandiosa e lisonjeada! Os dois mais importantes monarcas cristãos da península faziam-lhe a corte e desejavam-na, nada iria estragar esse momento único na sua vida! E isso ainda mais óbvio se tornou quando Maria, alarmada com tanta proximidade entre o par dançarino, aproveitou um momento em que Afonso VII estava de costas e só Chamoa nos via, para lhe deitar um olhar avisador e crítico, na esperança de que ela se acalmasse e pusesse fim àquela tolice, onde havia já um prenúncio de infidelidade. Vã vontade, pois a irmã repudiou-a com uma careta desdenhosa.

Ora, mana, deixai-me em paz!

Enorme era a confiança de Chamoa, que sorriu ainda mais ao imperador, como se lhe desse adicional gozo saber que Maria desaprovava os seus actos. A sua sorte foi Afonso Henriques não ter visto estes preparos, pelo que o momento mágico prosseguiu, até que o monarca leonês decidiu falar e a expressão dela alterou-se, nascendo-lhe no rosto uma espécie de curiosidade arreliada. Bela Chamoa..., começou o imperador. Mencionou a sua vontade de conquistar a Andaluzia, mas logo acrescentou o conhecimento que tinha sobre os desejos de infância dela, sabia que sonhava ser rainha de Portugal! Eu?, fingiu Chamoa. Já corada, como uma criança apanhada em flagrante, o seu sorriso logo se extinguiu, quando o hábil homem que a levava nos braços a avisou de que não devia alimentar tal fantasia, referindo o futuro casamento de Afonso Henriques com uma princesa da casa da Sabóia. Que dizeis?, balbuciou a minha cunhada. Felino, o imperador perguntou de chofre se ela conhecia as vontades de Egas Moniz e do arcebispo de Braga, João Peculiar. Ligeiramente incomodada, mas ainda contagiada pela vibrante dança, Chamoa disse que Afonso Henriques tinha afastado tais possibilidades, mas o imperador murmurou: Como sabeis, meu primo nem sempre diz a verdade... Afonso Henriques faltara várias vezes ao prometido e, perante a fala suave mas imensamente credível do interlocutor, o coração de Chamoa apertou-se.

Que se passa nas minhas costas?

As vertigens do passado regressaram e a confusão assentou arraiais no seu espírito, quando escutou as frases seguintes do imperador: Sabeis o que dizia o arcebispo de Compostela de meu primo? Tudo nele é um embuste, desde o nascimento!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Os Conquistadores de Lisboa, A Intriga de Compostela, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia CdasLetras/JDACT

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quarta-feira, 15 de setembro de 2021

A Vitória do Imperador. Domingos Amaral. «Emocionada, a mãe abraçou-o com força e disse: Vosso pai admirava muito Afonso Henriques, mas jurou lealdade a dona Teresa. Não foi capaz de a trair…»

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«Lourenço Viegas, filho de Egas Moniz e Dórdia Viegas, grande amigo de Afonso Henriques, casado com Maria Gomes, irmã de Chamoa Gomes. É o narrador da história.

Chamoa Gomes, filha de Gomes Nunes e Elvira Peres de Trava, irmã de Maria Gomes e viúva de Paio Soares, de quem tem três filhos, terá um quarto filho do seu primo Mem Rodrigues de Tougues, e terá ainda dois filhos de Afonso Henriques, Fernando e Pedro Afonso.

Fátima, neta do último califa de Córdova, filha de Hixam de Hisn e de Zulmira.

Zaida, neta do último califa de Córdova, filha de Hixam de Hisn e de Zulmira.

Zulmira, neta do rei de Sevilha e filha de Zaida de Sevilha. Casou em primeiras núpcias com Hixam de Hisn, de quem tem duas filhas, Fátima e Zaida. Casou em segundas núpcias com Taxfin, governador de Córdova. Morre em 1129.

Zaida de Sevilha, provavelmente filha do rei de Sevilha Al-Mutamid, casa com Afonso VI e converte-se ao cristianismo. É ficcionada a existência de uma filha sua, Zulmira, e de duas netas, as princesas Zaida e Fátima».

Tui, Dezembro de 1131

«(…) Naquele Natal, os Trava pareciam em perda acentuada. Depois de visitar as filhas em Lanhoso, Fernão Peres não mais voltara ao Condado Portucalense. Seu irmão Bermudo, que organizara uma pífia revolta em Seia, fora expulso definitivamente das terras regidas pelo príncipe de Portugal. Quanto à mãe de Chamoa, passara a desconsiderar Afonso Henriques por este ter expulso a filha de Guimarães, enquanto o seu marido, Gomes Nunes, vivia dividido nas lealdades. Obrigado a constantes malabarismos em defesa do seu interesse último, a manutenção da posse do condado de Toronho, cuja capital era a cidade de Tui, acredito que, no íntimo, aquele nobre portucalense desejava juntar-se a nós, pois odiava Afonso VII tanto como no passado abominara a mãe dele, dona Urraca. Mas, sendo casado com uma Trava, esse laço familiar sabotava a relação com Afonso Henriques. O único motivo de alegria de Gomes Nunes eram os netos. Maria ainda não lhos tinha dado, mas Chamoa já lhe proporcionara quatro rapazes, três de Paio Soares e um de Mem Tougues, e a mera presença dos petizes fazia aquele avô esquecer as agruras de Toronho. Paciente e bonacheirão, gorducho e de movimentos lentos, Gomes Nunes nunca fora um guerreiro e as suas atitudes receosas pareciam impostas pelas limitações físicas do seu corpo. Há muito que tomara a sábia decisão de se deixar levar pelos acontecimentos sem os contrariar, comportando-se como uma cana embalada pelo vento. Se os Trava queriam guerrear Afonso Henriques e este não se entendia com Chamoa, que podia ele fazer? Passava horas com o mais crescido dos filhos de Paio Soares, a quem fora dado o nome de Pêro Pais. Com quase cinco anos, era um menino esperto e de olho vivo, com um cabelo pejado de caracóis, como o seu falecido pai, e um espírito deveras inquisidor. Foi esse insaciável desejo de saber que o levou, ao escutar uma conversa entre os Trava durante a tarde de Natal, a perguntar ao avô: O que é uma relíquia sagrada?

Gomes Nunes, sempre pronto a esclarecer o neto, dessa vez ficou atrapalhado e sugeriu que ele fosse ter com a mãe, pois aqueles não eram assuntos de criança. Arguto, o menino rumou ao quarto de Chamoa e repetiu à mãe a pergunta. Alertada, a minha cunhada deduziu que Fernão Peres continuava a conspirar contra Afonso Henriques e que ia lançar-se para sul à procura do religioso artefacto. Ao escutá-la, Pêro Pais exclamou, revoltado: Fernão Peres não pode roubar o nosso príncipe! Apesar da tenra idade, Pêro Pais sabia que o pai, Paio Soares, estivera do lado errado da guerra, em São Mamede. Fora Afonso Henriques quem o atacara brutalmente, deixando-o tão combalido que a morte foi uma inevitabilidade. Porém, nem isso beliscava a forte admiração do rapaz pelo príncipe de Portugal.

É como eu, ama o Afonso.

Emocionada, a mãe abraçou-o com força e disse: Vosso pai admirava muito Afonso Henriques, mas jurou lealdade a dona Teresa. Não foi capaz de a trair e por isso morreu... O filho, mais interessado no presente do que no passado, perguntou-lhe de pronto: Que ides fazer? Chamoa limitou-se a pedir ao menino que se mantivesse atento, escutando as conversas dos outros Trava, mas no seu espírito germinava já um plano assaz requintado. Depois de comida a ceia de Natal pela família, aproximou-se discretamente de Mem Tougues e disse-lhe, em voz ternurenta: Gostava de ter a vossa companhia esta noite. O primo era aquele tipo de homem que acreditava piamente no que ouvia. Magro como um espeto, de cara pálida e barba rala, vivia numa permanente agitação calada, como se a revelação pública dos seus pensamentos o torturasse, com medo das consequências. Talvez para compensar tanta hesitação verbal, era exageradamente vaidoso e vestia-se aprumado, com meias longas e saiotes curtos, esperando certamente que a vistosa roupa ofuscasse a sua fraca personalidade». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, História, Literatura, A Arte,

A Vitória do Imperador. Domingos Amaral. «Foi por minha exclusiva culpa que não conhecemos mais cedo os planos do Trava contra o Condado Portucalense»

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«Lourenço Viegas, filho de Egas Moniz e Dórdia Viegas, grande amigo de Afonso Henriques, casado com Maria Gomes, irmã de Chamoa Gomes. É o narrador da história.

Chamoa Gomes, filha de Gomes Nunes e Elvira Peres de Trava, irmã de Maria Gomes e viúva de Paio Soares, de quem tem três filhos, terá um quarto filho do seu primo Mem Rodrigues de Tougues, e terá ainda dois filhos de Afonso Henriques, Fernando e Pedro Afonso.

Fátima, neta do último califa de Córdova, filha de Hixam de Hisn e de Zulmira.

Zaida, neta do último califa de Córdova, filha de Hixam de Hisn e de Zulmira.

Zulmira, neta do rei de Sevilha e filha de Zaida de Sevilha. Casou em primeiras núpcias com Hixam de Hisn, de quem tem duas filhas, Fátima e Zaida. Casou em segundas núpcias com Taxfin, governador de Córdova. Morre em 1129.

Zaida de Sevilha, provavelmente filha do rei de Sevilha Al-Mutamid, casa com Afonso VI e converte-se ao cristianismo. É ficcionada a existência de uma filha sua, Zulmira, e de duas netas, as princesas Zaida e Fátima».

Coimbra, Páscoa de 1131

«(…) Enamorado, sentiu primeiro paixão e depois, como quase sempre nos homens, um profundo medo de a perder. O seu coração encheu-se de temor das rivalidades e perguntou: O vosso amigo Mem, o almocreve, não vos visita? Zaida contou que já não eram tão próximos como dantes, enquanto a mãe Zulmira fora viva, pois o pobre almocreve ainda se torturava por não ter impedido a morte dela. Não teve forças para matar o assassin recordou Zaida. A sangrenta tragédia acontecera no casão agrícola do almocreve e as duas princesas mouras só haviam escapado a uma morte horrível devido à súbita aparição de Afonso Henriques, que eliminara o assassin, atirando-lhe um punhal à garganta. Gonçalo recordou a importância da enigmática arma, em cujo cabo se dizia ter sido gravado, em latim, o nome do local onde estava escondida a relíquia sagrada, trazida pelo conde Henrique da Terra Santa. Porém, Zaida limitou-se a suspirar, desalentada: nada sabia sobre o punhal do falecido esposo de Chamoa, muito menos sobre Sohba, a sua tia bruxa, que nunca mais reaparecera.

Filha, não é altura para falar disso...

Encolhendo os ombros, Zaida murmurou que aquelas eram irrelevâncias sem sentido. A minha mãe não vai ressuscitar, acrescentou. Vendo-a tão triste, o compassivo Gonçalo Sousa abraçou-a e renovou a promessa de tomar conta dela e de levá-la para a sua Córdova natal em breve. Mostrando-se grata, a hábil moura ofereceu-se outra vez, arqueando para ele as nádegas.

Filha, valerá a pena dar-vos tanto?

Foi grande o contentamento de Gonçalo nos dias seguintes. Feliz e enérgico, desaparecia todas as tardes sem explicar onde ia. Contudo, aquela euforia pouco durou. Por razões que não estou certo serem as mais nobres, Afonso Henriques anunciou que Gonçalo Sousa iria ser o alcaide do Castelo de Celmes, cuja construção começaria em breve, tendo de rumar ao Norte depressa, para dirigir as operações. Incrédulo, o nomeado protestou, invocou a sua recente e tórrida amizade à princesa moura e chegou mesmo a acusar o príncipe de o querer afastar dela, mas Afonso Henriques negou tal malícia, dizendo que também ele iria para Guimarães, enquanto Zaida permaneceria em Coimbra. Pelo menos, deixai-me levá-la comigo!, pediu o enamorado. O príncipe de Portugal não o autorizou, pois a possibilidade de uma guerra com o Trava era real. Celmes não era lugar para uma rapariga, só para destemidos e corajosos cavaleiros! Dias depois, zangado e contrariado, Gonçalo partiu de Coimbra e, tal como ele, também pensei que a princesa moura se iria entristecer de novo, mas não foi isso que se passou. A bela Zaida era um enigma indecifrável. Seja como for, Afonso Henriques, embora talvez pelos motivos errados, tomara a decisão certa. Celmes era um perigo, ainda bem que Zaida não rumou para lá com Gonçalo.

Tui, Dezembro de 1131

Foi por minha exclusiva culpa que não conhecemos mais cedo os planos do Trava contra o Condado Portucalense. Naquele Natal, eu e minha mulher não fomos a Tui passar a quadra festiva com a família dela. Maria Gomes andava indisposta há semanas e, convencido de que ela esperava finalmente uma criança, recusei-me a viajar por temer os solavancos da estrada e a travessia do rio Minho. Lourenço, não temais, sou resistente, contestou ela. Mas a decisão estava tomada e, ao contrário do que fizéramos nos últimos anos, ficámos em Guimarães, enquanto em Tui, como de costume, Gomes Nunes e Elvira Peres Trava, os pais de Maria e Chamoa, aproveitaram a ocasião para reunirem os Trava. Por lá apareceram Bermudo Peres Trava e sua esposa Urraca Henriques, irmã do nosso príncipe, bem como o inevitável Fernão Peres. E, desta vez, compareceu também Mem Rodrigues Tougues, filho de outro irmão Trava e pai do quarto filho de Chamoa, nascido nesse verão. Embora não vivessem como marido e mulher, pois minha cunhada recusara juntar-se ao primo direito, o filho comum forçava a aproximação entre os dois. Da última vez que a havíamos visitado, Chamoa jurara-me que jamais dividiria o leito com o Tougues, nem dele voltaria a procriar, por continuar enamorada de Afonso Henriques. Porém, minha mulher, que conhecia bem a mana, comentara na viagem de regresso: Chamoa não suporta os pés frios na cama... No Natal, unem-se. Assim seria, embora não pelas razões previstas. Não foi por falta de aquecimento pedestre que Chamoa se enfiou finalmente na cama com Mem Tougues, mas sim por lealdade a Afonso Henriques, por mais estranho que isso possa parecer». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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terça-feira, 14 de setembro de 2021

Domingos Amaral. A Vitória do Imperador. «Mostrando-se contente, Zaida sorriu em silêncio, cobrindo-o com mais beijos ousados. Após nova de ronda de prazeres, ele estava conquistado»

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«Lourenço Viegas, filho de Egas Moniz e Dórdia Viegas, grande amigo de Afonso Henriques, casado com Maria Gomes, irmã de Chamoa Gomes. É o narrador da história.

Chamoa Gomes, filha de Gomes Nunes e Elvira Peres de Trava, irmã de Maria Gomes e viúva de Paio Soares, de quem tem três filhos, terá um quarto filho do seu primo Mem Rodrigues de Tougues, e terá ainda dois filhos de Afonso Henriques, Fernando e Pedro Afonso.

Fátima, neta do último califa de Córdova, filha de Hixam de Hisn e de Zulmira.

Zaida, neta do último califa de Córdova, filha de Hixam de Hisn e de Zulmira.

Zulmira, neta do rei de Sevilha e filha de Zaida de Sevilha. Casou em primeiras núpcias com Hixam de Hisn, de quem tem duas filhas, Fátima e Zaida. Casou em segundas núpcias com Taxfin, governador de Córdova. Morre em 1129.

Zaida de Sevilha, provavelmente filha do rei de Sevilha Al-Mutamid, casa com Afonso VI e converte-se ao cristianismo. É ficcionada a existência de uma filha sua, Zulmira, e de duas netas, as princesas Zaida e Fátima».

Coimbra, Páscoa de 1131

«(…) Tristonha, fez beicinho e murmurou: É bom ver-vos, sinto-me muito sozinha.

Filha, quereis dar-vos a ele?

Devido à morte de Zulmira, aquela que era uma das netas do último califa de Córdova confessou que a sua existência presente era pesada e sombria. A irmã Fátima ainda aspirava à glória que dizia merecer, sonhando com o regresso ao trono da antiga capital do califado muçulmano da Andaluzia, mas Zaida já não alimentava essa fantasiosa crença. Em voz baixa, recordou que quase todos os que amava tinham morrido. A solidão em Coimbra tornara-se um duro hábito e ver Gonçalo ali era motivo de enorme felicidade. Sempre simpatizara com ele e, sedenta de companhia e atenção, convidou-o a entrar na sua casa, alegando que era exímia cozinheira e lhe serviria um belo repasto. Parado, fingindo receio e desconfiança, Gonçalo perguntou: A Fátima não me cortará a cabeça? Zaida deu uma gargalhada, aquele rapaz divertia-a. Enquanto abria a porta e ambos entravam, explicou: Continua a mesma fera, mas não tem nenhuma arma. Mal o disse, ouviu-se na sala uma voz incomodada. No escuro, alguém afirmou o seu desprezo por ver ali Gonçalo: Tirai-me esse cristão da frente! Zaida ignorou a ordem da irmã e explicou que o convidara para almoçar escabeche de sardinhas, dando-lhe também a provar o arroz-doce que a mãe Zulmira a ensinara a cozinhar. Mal empregado açúcar, rezingou Fátima.

O nosso amigo admirou-a. Continuava magra e tensa, o oposto de Zaida, e os seus belos olhos negros não disfarçavam umas olheiras marcadas. A morte da mãe endurecera-a, tornando-a mais fria do que já era, com um timbre de voz mais ácido. Embora mantivesse o espírito arrogante de uma princesa real e a postura altiva de uma orgulhosa prisioneira, notava-se nela uma ferida na alma, como se tivesse perdido a intensidade absoluta das suas convicções. Prefiro a companhia dos cavalos, rosnou Fátima, passando em frente aos outros e dirigindo-se para a porta. Depois de ela sair, Zaida contou a Gonçalo que os animais eram a única distracção que os cristãos permitiam a Fátima. Não é boa ideia, ainda foge num!, protestou Gonçalo. Enquanto ia e vinha da cozinha, trazendo os alimentos e um jarro de vinho, Zaida explicou que o picadeiro onde a irmã passava as tardes era fechado e os soldados vigiavam-no sempre, pois tratavam-se de cavalos de guerra. Tendes maravilhosos dotes, apreciou Gonçalo, entusiasmado com o cheiro saboroso que emanava dos pratos confecionados por Zaida. Os meus melhores truques são secretos!, ripostou ela, marota e sorridente, regressando à cozinha aos saltinhos.

Filha, fui eu que vos ensinei, mas tende cuidado...

Pouco depois, com um arremesso de coragem típico dos sedutores, Gonçalo agarrou-a pela cintura e sentou-a nas suas pernas, ouvindo-a libertar risinhos de agrado. Dai-vos, minha bela princesa, é tudo o que desejo!, pediu. A rapariga moura bateu as pestanas e perguntou: Levais-me para Córdova? Gonçalo disse que sim, mas diria que sim a tudo, tal era o seu intenso desejo. Agradada, Zaida aceitou os seus mimos e, pela primeira vez, cedeu às intenções de um homem.

Filha, ele é amigo do Afonso!

Com gestos lentos mas precisos, o nosso amigo despiu-lhe o alifafe e o vestido e apreciou demoradamente o seu belo corpo feminino. O peito de Zaida era cheio e Gonçalo não resistiu a cobri-lo de beijos. Entusiasmada, a moura levantou o saiote dele e, ajoelhada a seus pés, beijou-o. De seguida, os dois mudaram-se para o quarto e deitaram-se nus no colchão de uma grande cama, amando-se sem pressas e sem pausas. Zaida, bem industriada pela mãe Zulmira, que lhe revelara os famosos e ancestrais truques dos haréns de Sevilha e de Córdova, deixou Gonçalo boquiaberto com a sua mestria, ao ponto de este lhe ter perguntado se era mesmo virgem. Sois o meu primeiro homem, declarou com solenidade a rapariga. Depois, como muitas vezes acontece às mulheres, terminado aquele quente e doce combate carnal, emocionou-se e chorou, com a cabeça no ombro do seu primeiro amante. As saudades da mãe eram muitas e, piedoso mas também esperto, o dedicado Gonçalo prometeu que a viria visitar todos os dias, enquanto estivesse em Coimbra. E, logo que pudesse, iriam para Córdova.

Filha, vinde ter comigo, ele traz-vos!

Mostrando-se contente, Zaida sorriu em silêncio, cobrindo-o com mais beijos ousados. Após nova de ronda de prazeres, ele estava conquistado». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, História, Literatura, A Arte, 

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Domingos Amaral. A Vitória do Imperador. «Se desejardes, ide até Tui, deitar-vos na cama com ela! E se lá encontrares o Mem Tougues, enviai-lhe os meus cumprimentos!»

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«Lourenço Viegas, filho de Egas Moniz e Dórdia Viegas, grande amigo de Afonso Henriques, casado com Maria Gomes, irmã de Chamoa Gomes. É o narrador da história.

Chamoa Gomes, filha de Gomes Nunes e Elvira Peres de Trava, irmã de Maria Gomes e viúva de Paio Soares, de quem tem três filhos, terá um quarto filho do seu primo Mem Rodrigues de Tougues, e terá ainda dois filhos de Afonso Henriques, Fernando e Pedro Afonso.

Fátima, neta do último califa de Córdova, filha de Hixam de Hisn e de Zulmira.

Zaida, neta do último califa de Córdova, filha de Hixam de Hisn e de Zulmira.

Zulmira, neta do rei de Sevilha e filha de Zaida de Sevilha. Casou em primeiras núpcias com Hixam de Hisn, de quem tem duas filhas, Fátima e Zaida. Casou em segundas núpcias com Taxfin, governador de Córdova. Morre em 1129.

Zaida de Sevilha, provavelmente filha do rei de Sevilha Al-Mutamid, casa com Afonso VI e converte-se ao cristianismo. É ficcionada a existência de uma filha sua, Zulmira, e de duas netas, as princesas Zaida e Fátima».

Coimbra, Páscoa de 1131

«(…) A pergunta da rapariga trazia um luminoso sorriso associado, mas ao ver Afonso Henriques o seu riso diminuiu de intensidade e, com a clareza com que sempre revelava as suas opiniões, Zaida declarou: Chamoa não merecia ser escorraçada! Errou, mas ama-vos! As duas eram muito amigas há vários anos e a moura não esquecia as suas lealdades. Só que o príncipe não gostou que lhe recordassem o que tentava esquecer e resmungou, irritado: Se desejardes, ide até Tui, deitar-vos na cama com ela! E se lá encontrares o Mem Tougues, enviai-lhe os meus cumprimentos! A antiga insinuação de que Zaida e Chamoa dormiam juntas e se banhavam nuas no rio pairou sobre nós, mas Gonçalo defendeu-a. A Zaida vai para Tui? Só por cima do meu cadáver! Os olhos da moura brilharam, o que teve o condão de ainda enervar mais o príncipe, que logo esporeou o cavalo, afastando-se a trote, enquanto Zaida ouvia a voz de sua mãe.

Filha, não o zangueis...

Na companhia de meu tio, segui o meu melhor amigo, mas reparei que Gonçalo permanecia junto à princesa de Córdova. Pelo canto do olho, vi-o desmontar, mas o que se passou de seguida só o soube tempos mais tarde, quando Zaida mo relatou. A pé, levando o cavalo pela rédea, Gonçalo Sousa acompanhou-a pelas ruas de Coimbra, em direcção à casa onde as irmãs mouras estavam instaladas, tendo ficado a saber que a rapariga tinha obtido uma autorização especial do bispo Bernardo para poder realizar as suas leituras na Sé. Depois, já à porta da habitação, numa rua da almedina, Gonçalo perguntou a Zaida se a irmã Fátima voltara a planear perigosas fugas. Continua à espera do seu amado Abu, certa de que a virá buscar. Mas obriguei-a a prometer não se arriscar em loucuras solitárias! Ao dizer isto, Zaida sorriu, dengosa, batendo as pestanas e Gonçalo Sousa interpretou esse leve sinal como um incentivo. Admiro a paixão da vossa irmã por Abu Zhakaria! Quem me dera que uma mulher me amasse assim!, exclamou, com um ar exageradamente romântico e ligeiramente postiço.

A princesa moura soltou um divertido risinho e ripostou: Continuais o mesmo finório! Julgais que caio na vossa teia? Fingindo-se ofendido, Gonçalo recuou um passo e indignou-se: Que dizeis? Sois a única por quem estou enamorado! Todas as noites sonho em levar-vos para Córdova! Zaida sorriu de novo, mas lavrou um pequeno protesto: Se fosse verdade, não vos amigavas com outras... Notando naquele queixume a revelação de um ciúme deveras entusiasmante, Gonçalo aproximou-se e falou ao ouvido da moça. Sou um tolo, bem sei, mas apenas porque me afastais. Se vos desseis, esquecia todas as outras mulheres do mundo, pois em nenhuma penso como penso em vós. Zaida baixou um pouco a cabeça e a sua testa tocou no queixo daquele hábil galanteador».  In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, História, Literatura, A Arte, 

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Éramos quatro e já a noite tinha caído quando saímos pela porta das muralhas de Viseu, a pé e forçando-nos a um rigoroso silêncio»

 

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

1126

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) As mouras desataram a rir com aquela indirecta confissão, mas entretanto Zulmira chamou-as e levantaram-se todas. Em voz baixa, para a mãe não a escutar, Zaida prometeu às galegas que lhes mostraria o livro proibido quando fossem a Coimbra, acrescentando: Não é tão belo como As Mil e Uma Noites, mas aprendem-se umas coisas muito úteis. Até muito tarde na vida não fazia ideia de que as mulheres falavam assim entre elas. Seja como for, a Maria tinha razão, sempre avisou a Chamoa, sempre lhe disse que tivesse mais cuidado, não se desse tanto aos homens. Ela é que não a ouviu. As pessoas são como são, não mudam só porque alguém lhes diz que tenham cuidado.

Éramos quatro e já a noite tinha caído quando saímos pela porta das muralhas de Viseu, a pé e forçando-nos a um rigoroso silêncio. Se nos vissem ali, à procura de diversão numa Sexta-Feira Santa, seríamos repreendidos pelo prior Teotónio. Ainda para mais, entre nós estava o príncipe, que se queria um exemplo para os populares. Se o distinguissem, enrolado num manto e de capuz a cobrir-lhe a cabeça, decerto pensariam que ia às soldadeiras, prazer compreensível noutra noite, mas proibido naquela. Porém, há meses que Afonso Henriques, Gonçalo Sousa, o Braganção e eu não estávamos juntos e o apelo da companhia e da farra fora mais forte do que a obrigação de recato. Mesmo assim, só começámos a falar mais alto depois de sairmos da cidade, um pouco antes de o príncipe parar de súbito. Na beira da estrada, no escuro da noite, viam-se os vagos contornos de um penedo granítico, talvez a dez metros. Gonçalo admirou-se mais uma vez com o olho certeiro do príncipe. Livra, que morcego!

Encostado à grande pedra estava um vulto, sentado no chão. Afonso Henriques deve-o ter reconhecido, pois avançou sem receios e disse o nome dele. Ramiro olhou-o com estranheza, como se visse um fantasma. Na sua mão, estava o bonito punhal de seu pai, Paio Soares, com uma pérola no topo do cabo. Pressentindo a desorientação que o consumia, o príncipe aconselhou-o: Não cismeis tanto... O outro continuou a olhar para o vazio. Afonso Henriques ajoelhou em frente dele e o seu tom de voz tornou-se persuasivo. Seja o que for que vos aconteceu de terrível, daqui a dez anos nem vos ides lembrar. Ramiro franziu a testa, como se tivesse tido uma revelação inesperada. Depois, concordou com um aceno de cabeça e colocou a arma no cinto, enquanto Afonso Henriques perguntava: Sofreis por honra ou por mulher? A tristeza do outro levou-o a concluir que se tratava de mal de amor. Nenhuma dama, por mais bela que seja, é a única no mundo, disse o príncipe.

Ramiro baixou os olhos, demasiado dorido para responder. Quereis vir connosco? Vamos à estalagem, informou Afonso Henriques. O Braganção protestou, não estava à vontade com Ramiro. Talvez por isso, este recusou e disse que iria para casa. Afonso Henriques estendeu-lhe o braço,ajudando-o a levantar-se, e acrescentou: Depois da Páscoa, podias vir a Lamego connosco, às canas. Ramiro garantiu que o pai não o deixaria e depois despediu-se e regressou ao castelo. Os quatro amigos marcharam então para a estalagem, um pequeno edifício a cerca de cem passos, com umas estrebarias junto, e onde um archote ardia sobre a porta. Dois cavaleiros-vilões, sentados numa das mesas, saudaram o príncipe, continuando à conversa com duas soldadeiras, cujos decotes abertos mostravam os peitos redondos. Pareciam gostosas, pelo menos aos olhos do Braganção, que em voz alta as gabou. Depois de se sentarem, o afoito Gonçalo fez um sinal a uma delas, ordenando-lhe que se aproximasse. Morena e de cabelos longos, mas de nariz pontiagudo e feia, avisou que os cavaleiros-vilões tinham precedência. O Braganção ainda protestou, mas Afonso Henriques aconselhou-o a ser paciente. Devem ter vindo para as justas de domingo. São dos nossos, não os agastemos. Contrariado, o Braganção resmungou: Nunca somos bem tratados... Sois como vossa mãe, que nos atirou quase para fora da muralha!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

domingo, 12 de setembro de 2021

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Desconfiada, Fátima perguntou: Mas fod…? Chamoa riu-se com aquela pergunta tão brusca e reforçou: Demos só uns beijos!»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

1126

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) Entretanto, vinda do primeiro andar, apareceu Teresa de Celanova. Desejosa de novidades, Maria Gomes quis saber se ela tinha algumas.Dona Teresa já falou com os vossos pais. O Lourenço é bom moço, disse a Celanova, piscando-lhe o olho. Maria Gomes endireitou-se, orgulhosa, mas Chamoa perguntou: E o pai dele autoriza? Egas e dona Teresa não se estimam! Teresa Celanova corou ligeiramente, mas recompôs-se. Egas Moniz é bom homem, suave e carinhoso. Ao contrário do que se diz, dona Teresa admira-o, tem educado o príncipe muito bem. Esta favorável opinião da rainha, que Teresa Celanova ali repetia, era uma novidade, o que levou Zulmira a perguntar: Falais de Egas Moniz com ternura. Estais encantada por ele? A outra voltou a corar e respondeu: Agrada-me a sua companhia. Desconfiada, Fátima largou um murmúrio malicioso: É um bocado velho para vós. Enervada, Teresa Celanova contestou-a: Está muito bem para os seus quarenta e oito anos! Sempre tortuosa, Fátima perguntou-lhe: Mas não sois enamorada pelo Afonso Raimundes? Pelo menos é da vossa idade, não murcha. Já o velho Egas... Zulmira repreendeu-a novamente e num esforço de cortesia deu o braço a Teresa Celanova, conduzindo-a para a saída, enquanto ordenava às filhas que se fossem deitar. Porém, as quatro raparigas permaneceram sentadas. Quando a Celanova já não as podia ouvir, Chamoa perguntou: Será verdade que Afonso Raimundes a filhou? Fátima contou o que sabia: Ia muito ao castelo do pai dela. Mas só se a filhou na peideira, pois dizem que ainda é virgem, para sorte do velho Egas! Então, perguntou às galegas se já conheciam homem, tendo Chamoa e Maria Gomes confirmado que não. Zaida sorriu-lhes, com um ar doce. Podeis sempre aprender com mulheres, disse. Chamoa sorriu-lhe de volta, mas Maria Gomes indignou-se: Nós não vivemos em haréns! Conciliatória, Zaida aceitou com naturalidade aquela diferença e depois voltou a mirar Chamoa, intrigada. O Ramiro, o bastardo do Paio Soares, que lhe haveis feito?

Chamoa franziu a testa e murmurou, preocupada: Hoje achei-o magro, parecia doente. Depois, contou que em Ponte de Lima tinham estado uma tarde juntos. Desconfiada, Fátima perguntou: Mas fod…? Chamoa riu-se com aquela pergunta tão brusca e reforçou: Demos só uns beijos! Maria Gomes olhou-a com um ar reprovador e murmurou: A Chamoa exagera, já lhe disse que seja mais recatada! Nesse momento, Fátima animou-se e contou: Em Coimbra, temos um livro de fo…, com figuras e tudo! A minha mãe trouxe-o com ela, quando viemos para cá com o Taxfin. A Zaida descobriu-o no fundo de uma arca e já o lemos. Aprendi muito. Levou o polegar à boca e chupou-o, enquanto Chamoa se ria. Zaida, suspeitando de que a outra já se aventurara nesses beijos, perguntou: Foi assim que haveis beijado o Ramiro? Chamoa apanhou os seus cabelos cor de mel numa trança e garantiu que apenas tinham ido passear pelos campos. Porém, sempre viperina, Fátima esboçou uma careta: Se casardes com o pai dele, ides soprar na gaita da família toda! Chamoa afligiu-se de imediato, olhando para a irmã: Paio Soares foi muito gentil comigo, mas é um velho! Quase tão velho como o Egas! Irmã, vou ter de me casar com ele? Maria Gomes limitou-se a uma constatação solene: Casamos com quem os nossos pais mandam. Perante tão perentória declaração, Zaida decidiu animar a assustada Chamoa, exclamando: Pode ser que o príncipe se enamore de vós!

A rapariga galega levantou-se de imediato, entusiasmada. Na igreja não me largava! Sempre à minha roda! Não viram? Até fiquei atrapalhada! Acham que está encantado comigo? Excitada, mas também carregada de dúvidas, Chamoa interrogou a irmã mais velha: O primo Mem Tougues disse que me afastasse do Afonso Henriques, pois ele só queria filhar-me! Será desses? Irritada, Maria Gomes avisou-a: Não vos fieis no Mem Tougues, sabeis bem o que ele quer de vós! A bela galeguinha olhou-a, perplexa, e afirmou: Maria, a mãe disse-me que é com os primos que se aprende!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

Homenagem. Uma Pequenina Luz. Jorge de Sena. «Brilhando incerta mas brilhando aqui no meio de nós, entre o bafo quente da multidão, a ventania dos cerros e a brisa dos mares…»

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Com a devida vénia

Uma pequenina luz

«Uma pequenina luz

Uma pequenina luz bruxuleante
Não na distância brilhando no extremo da estrada
Aqui no meio de nós e a multidão em volta
Une toute petite lumière
Just a little light
Una picolla, em todas as línguas do mundo

Uma pequena luz bruxuleante
Brilhando incerta mas brilhando aqui no meio de nós
Entre o bafo quente da multidão
A ventania dos cerros e a brisa dos mares
E o sopro azedo dos que a não vêem
Só a adivinham e raivosamente assopram

Uma pequena luz, que vacila exacta
Que bruxuleia firme, que não ilumina, apenas brilha
Chamaram-lhe voz ouviram-na, e é muda
Muda como a exactidão, como a firmeza, como a justiça
Brilhando indeflectível
Silenciosa não crepita
Não consome não custa dinheiro
Não é ela que custa dinheiro
Não aquece também os que de frio se juntam
Não ilumina também os rostos que se curvam
Apenas brilha, bruxuleia ondeia
Indefectível, próxima dourada

Tudo é incerto, ou falso, ou violento: Brilha
Tudo é terror, vaidade, orgulho, teimosia: Brilha
Tudo é pensamento, realidade, sensação, saber: Brilha
Desde sempre, ou desde nunca, para sempre ou não: Brilha

Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Como a exactidão como a firmeza, como a justiça
Apenas como elas
Mas brilha
Não na distância. Aqui
No meio de nós
Brilha».

Poema de Jorge de Sena

JDACT, Jorge de Sena, Jorge Sampaio, Cultura e Conhecimento,

sábado, 11 de setembro de 2021

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Chamoa fez um esgar de enfado, dizendo: Gosto mais de dançar e de ouvir os elogios dos rapazes! Zaida sorriu-lhe, compreensiva, mas Fátima logo barafustou: Só pensam em mexer-nos nas tetas, ou enfiar-nos o pau na fenda!»

 

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1126

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) Mais afastada da igreja, acolhera-se noutra habitação a família de Ribadouro, junto de quem permanecia o príncipe, Afonso Henriques, que há já uns anos nunca dormia sob o mesmo tecto que a mãe. E outras duas famílias encontravam-se por perto: a de Celanova, num prédio junto ao de dona Teresa; e a de Paio Soares, no segundo edifício mais rico da cidade, conforme ordem expressa da rainha. Ainda dentro da muralha, estavam outros nobres portucalenses. O Braganção, por exemplo, fora remetido para perto de uma das portas de Viseu, de forma a evitar as habituais barafundas em que se metia; e a família dos Mendes de Sousa, onde o pai Soeiro pontificava e cujo filho Gonçalo era grande amigo do príncipe, fora colocada no lado oposto da cidade. Esta cuidadosa disposição era intencional e cheia de significado. Paio Soares encontrava-se em rápida ascensão na corte, mas os Moniz de Ribadouro estavam suficientemente longe para perceber que mandavam pouco, mas suficientemente perto para não ferir o seu estatuto oficial de guardiões do príncipe. Quanto aos restantes portucalenses, a sua presença em Viseu era um primeiro sinal de reaproximação, mas estavam obrigados a um humilhante afastamento, enquanto não se submetessem de novo à rainha.

Como certa vez me confirmou sua filha Zaida, nada disto escapara a Zulmira, que sentia os ventos de mudança que percorriam o Condado e a Hispânia. Embora dona Teresa tivesse ainda de prestar vassalagem ao novo rei, Afonso VII, cuja coroação estava prevista para breve, as suas ambições expandiam-se e agora, que sua irmã Urraca morrera, tinha de novo os olhos postos na coroa da Galiza. Para se fortalecer, iria nomear o seu antigo companheiro e actual genro, Bermudo Trava, como governador de Viseu; erguer o vaidoso Paio Soares à condição de mordomo-mor; e usar Teresa de Celanova como engodo para aliciar Egas Moniz. Zaida confessou-me que a sua mãe não deixava de admirar a forma hábil como dona Teresa tentava dominar as suas gentes. Ainda criança, Zulmira observara o seu avô, rei de Sevilha, ou o seu pai, Ismail, antigo governador de Córdova, a usar estratagemas semelhantes. E, enquanto o seu marido, Taxfin, fora governador da mesma cidade, vira idênticas artes serem praticadas. O poder dos que reinavam expandia-se com a sua capacidade de concederem aos outros o que estes ambicionavam, obrigando-os em troca a cumprirem as exigências de quem mandava.

Ao chegar a um pequeno pátio interior, Zulmira ouviu os gritinhos roucos das filhas. Divertidas, conversavam com Maria Gomes e com sua irmã Chamoa. Mal a viu chegar, Fátima perguntou-lhe: Mãe, que vos parece o Lourenço Viegas? Não é um trombudo? Zulmira reparou que Maria Gomes se incomodou com esta opinião. É bom moço e de confiança, respondeu. Todos conhecem as suas habilidades guerreiras. Quem casar com ele fica bem servida. Maria Gomes sorriu-lhe, agradecida pelo elogio às qualidades de quem já a encantava. Porém, logo a viperina Fátima comentou: Dizem que é melhor com a espada do que com o bastão lá de baixo... Fátima era terrível, não perdia uma oportunidade para nos vilipendiar. Isto era uma infâmia da moura, é evidente! Nunca tive desses problemas, como a minha querida Maria depois confirmou. Já quanto a ser trombudo, hoje, muito anos depois, reconheço que talvez fosse um pouco sério de mais. Maria Gomes, zangada, manteve-se em silêncio, enquanto Zulmira repreendia a filha, mandando-a calar. Depois, perguntou àquela: Gostais de Lourenço Viegas? A irmã de Chamoa corou e murmurou: É gentil e bem-parecido. E disse que me acha bela. Fátima soltou uma gargalhada e afirmou com desdém: Isso dizem todos, quando nos querem filhar! Depois de se meterem dentro de nós, desaparece-lhes a doçura num instante! As irmãs Gomes pareceram alarmadas, as suas opiniões sobre os homens eram menos definitivas. Zaida constatou então: O Lourenço é o melhor amigo de Afonso Henriques. Imediatamente interessada, Chamoa perguntou: O que achais do príncipe? Fátima fez um esgar de desagrado. É burro. Duro de cabeça como um seixo no rio. Nem sequer sabe ler ou escrever! A única vez que lutei contra ele, ganhei! Mais uma vez, a mãe contestou-a: Os cristãos não têm os nossos costumes. As nossas crianças aprendem cedo os números e a poesia, e sabem declamar. Olha a Zaida, era pequena quando ficámos prisioneiras, mas já sabia ler, e agora lê mais do que todos os párocos de Coimbra juntos!

Chamoa fez um esgar de enfado, dizendo: Gosto mais de dançar e de ouvir os elogios dos rapazes! Zaida sorriu-lhe, compreensiva, mas Fátima logo barafustou: Só pensam em mexer-nos nas tetas, ou enfiar-nos o pau na fenda! E nem lavar-se sabem! Em Córdova, ninguém cheira mal, como aqui! Os homens, ao fim da tarde, tresandam como caca de boi! Curiosa, Maria Gomes perguntou: Vocês nasceram em Córdova? As raparigas mouras olharam para a mãe, que lhes fez um quase impercetível sinal de alerta e se antecipou na resposta. Sim. O meu marido era o governador da cidade. O Azzahrat estava sempre cheio de poetas, cantores e pintores. Vinham mercadores de longe, até de Bagdad, para nos venderem tecidos e joias! Fátima gabou a arquitectura mourisca com um protesto: As vossas casas são uma desgraça! Não há claustros, pinturas nas paredes, mosaicos no chão! Viveis como pobres!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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