terça-feira, 7 de setembro de 2021

Memorial do Convento. José Saramago. «Vai cair aí o poder do mundo, rematou Baltasar. Foi esta conversa quando já Inês Antónia se retirara, e por isso Álvaro Diogo pôde falar com liberdades de homem»

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«(…) Enfim, sendo tão boas as disposições de maternidade da rainha, já el-rei lhe fez outro infante, este, sim, será rei, que daria matéria para outro memorial e outros abalos, e se alguém tiver curiosidade de saber quando equilibrará Deus este nascimento real com um popular nascimento, equilibrará sim, mas não por via destes homens mal conhecidos e destas mulheres por adivinhar, que não quererá Inês Antónia que outros filhos lhe morram, e Blimunda se desconfia que possui artes misteriosas para não os ter. Fiquemo-nos por estes mais crescidos, pelo repetitivo relato que Sete-Sóis tem de fazer da sua história militar, seu pequeno parágrafo dela, como foi a mão ferida e como lha cortaram, mostra os acrescentamentos de ferro, enfim, tornaram a ouvir-se as costumadas e não imaginativas lamentações, Aos pobres é que estas desgraças sempre sucedem, e nem é tão verdade assim, não falta aí morrerem ou ficarem estropiados cabos e capitães, Deus tanto compensa o pouco como reduz o muito, porém, passada uma hora já todos se habituaram à novidade, só os rapazinhos não desviam os olhos, fascinados, e arrepiam-se quando o tio, por divertimento, se serve do gancho para os levantar do chão, são modos, o que maior interesse mostra no exercício é o mais novo, aproveite aproveite enquanto é tempo, só tem três meses para brincar.

Nestes dias primeiros ajuda Baltasar ao pai no trabalho do campo, outra terra de que este é caseiro, tem de aprender tudo desde o princípio, é certo que não esqueceu os antigos gestos, mas agora como os fará. E, para prova de que em sonhos não há firmeza, se foi capaz de lavrar, sonhando, o alto da Vela, bastou-lhe olhar outra vez o arado para perceber o que vale uma mão esquerda. Ofício cabal, só o de carreiro, mas, não havendo carreiro sem carro e junta de bois, por agora servirão os do pai, ora eu, ora tu, amanhã terás que te pertença, E morrendo eu cedo, talvez venhas a forrar o dinheiro que juntares para comprar a junta e o carro, Pai, que não o ouça Deus. Vai também Baltasar à obra onde o cunhado está a trabalhar, é o muro novo da quinta dos viscondes de Vila Nova da Cerveira, não se confunda a geografia, que o viscondado é de lá, mas o palácio está aqui, e se, como então, agora escrevêssemos bisconde e biscondado, não faltaria zombarem de nós pela vergonha de tal pronúncia do Norte em terras do Sul, nem parecemos aquele país civilizado que deu mundos novos ao mundo velho, quando o mundo tem todo ele a mesma idade, e, se vergonha realmente for, decerto não ficará maior se lhe chamarmos bergonha. A este muro não poderá Baltasar acrescentar pedra, afinal teria sido bem melhor se tivesse ficado sem uma perna, um homem tanto pode apoiar-se num pé como num pau, é a primeira vez que tal ideia lhe vem, mas lembra-se como ficaria sem jeito quando estivesse deitado com Blimunda, em cima dela, e acha que não senhor, o melhor foi ter-se ido a mão, muita sorte terem-lhe acertado na esquerda. Álvaro Diogo desce do andaime e, enquanto no resguardo duma sebe come o jantar que lhe traz Inês Antónia, diz que não irá faltar trabalho a pedreiros quando começarem as obras do convento, não precisará sair da terra a procurar serviço nos arredores da vila, semanas e semanas fora de casa, por muito vadio que de sua natureza um homem seja, a casa, se a mulher que nela está é estimada e os filhos amados, tem o gosto que tem o pão, não é para todas as horas, mas sente-se-lhe a falta se não for todos os dias.

Baltasar Sete-Sóis foi vadiar por perto, ao alto da Vela, donde se vê toda a vila de Mafra no seu buraco, ao fundo do vale. Aqui brincou quando tinha a idade do sobrinho mais velho, e depois, mas não por muito tempo, que cedo é preciso entregar os braços ao campo. O mar está longe e parece perto, brilha, é uma espada caída do sol, que o sol há-de embainhar devagarinho quando descer no horizonte e enfim se sumir. São comparações inventadas por quem escreve para quem andou na guerra, não as inventou Baltasar, mas por alguma razão sua se lembrou da espada que tem guardada em casa dos pais, nunca mais a desembainhou, provavelmente já está coberta de ferrugem, um dia destes lhe passará a pedra e azeitará, nunca se sabe o dia de amanhã. Haviam sido terras de cultivo, agora estão abandonadas. As estremas que ainda se mantêm visíveis, as sebes, os caniçados, os valados já não separam propriedades. Tudo isto pertence ao mesmo dono, a el-rei, que se ainda não pagou, pagará, que lá de boas contas é ele, faça-se-lhe essa justiça. João Francisco Sete-Sóis está à espera da sua parte, pena que não fosse tudo dele, ficava rico, até agora alcançam as escrituras de venda trezentos e cinquenta e oito mil e quinhentos réis, e com o andar dos tempos, ao que isto ainda está para crescer, passará de quinze milhões de réis, número que pesa muito nas fracas cabeças populares, por isso traduziremos em quinze contos e quase cem mil réis, um poder de dinheiro. Se o negócio é bom ou mau, isso depende, que o dinheiro não tem sempre o mesmo valor, ao contrário dos homens, que sempre valem o mesmo, tudo e coisa nenhuma. E o convento, vai ser coisa grande, perguntara Baltasar ao cunhado, e este respondeu, Primeiro falou-se em treze frades, depois subiu para quarenta, agora já andam os franciscanos da albergaria e da capela do Espírito Santo a dizer que hão-de ser oitenta, Vai cair aí o poder do mundo, rematou Baltasar. Foi esta conversa quando já Inês Antónia se retirara, e por isso Álvaro Diogo pôde falar com liberdades de homem». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT

Leituras, JDACT, José Saramago, O Saber, A Arte, Nobel da Literatura,