«(…) Malone viu as chamas que desciam pararem perto do final da escada, sem nenhum sinal de que avançariam. Ficou diante de uma das janelas e procurou algo para arremessar contra o vidro espelhado. As únicas cadeiras que viu estavam perto demais do fogo. O segundo mecanismo continuou perambulando pelo chão do térreo, exalando a névoa. Malone hesitou. Tirar a roupa era uma opção, mas o cabelo e a pele também estavam impregnados da substância química. Três baques na janela espelhada o assustaram. Virou-se e, a meio metro dele, um rosto familiar o encarava. Cassiopeia Vitt. O que ela estava fazendo ali? O olhar dele certamente demonstrou a surpresa, mas foi directo ao ponto e gritou: Preciso sair daqui. Ela apontou a porta. Ele entrelaçou os dedos, sinalizando que estava trancada. Ela fez um gesto para que ele se afastasse. Quando o fez, viu fagulhas saindo da parte de baixo da geringonça em movimento. Correu até à coisa e virou-a com um chuto. Na base, viu rodas e mecanismos. Ouviu um estouro, depois outro, e entendeu o que Cassiopeia estava fazendo. Atirando na janela. Depois, viu algo que não notara antes. Acima das vitrines havia sacos plásticos fechados, cheios de um líquido claro. A janela rompeu-se. Nenhuma alternativa. Ele arriscou aproximar-se das chamas, pegou uma das cadeiras que avistara antes e lançou-a contra o vidro partido. A janela despedaçou-se e a cadeira chegou à rua do outro lado. O mecanismo móvel ficou de pé novamente. Uma das fagulhas se inflamou e chamas azuis começaram a consumir o piso térreo, avançando em todas as direcções, inclusive na dele. Ele disparou para a frente, pulou pela janela aberta e caiu de pé. Cassiopeia estava a um metro dele. Ele sentira a mudança de pressão quando a janela quebrou. Entendia um pouco de incêndios. Naquele exacto momento, as chamas estavam sendo pressurizadas pela entrada de oxigénio novo. As diferenças de pressão também estavam fazendo efeito. Os bombeiros chamavam isso de flashover. E aqueles sacos plásticos no alto das vitrines. Ele sabia o que continham. Pegou Cassiopeia pela mão e empurrou-a para o outro lado da rua. O que está fazendo?, perguntou ela. Hora do mergulho. Pularam do parapeito de tijolos, no mesmo momento em que uma bola de fogo saía do museu.
A
ministra suprema Irina Zovastina acariciou o cavalo e preparou-se para a
partida. Adorava jogar logo após o alvorecer, à primeira luz da manhã, sobre o relvado
do campo húmido de orvalho. Também adorava os famosos garanhões puro-sangue de
Fergana, premiados há mais de um milénio, quando eram vendidos para os chineses
em troca de seda. Os estábulos dela tinham mais de cem cavalos, criados por
prazer e política. Os outros cavaleiros estão prontos?, perguntou ao empregado.
Sim, ministra. Eles a aguardam no campo. Irina usava botas de couro de cano
alto e um casaco acolchoado sobre um longo chapan. Sobre o cabelo curto,
loiro platinado, tinha um chapéu de pele de lobo, um que ela matara com grande
orgulho. Não vamos deixá-los esperando. Montou no cavalo. Juntos, ela e o
animal haviam vencido muitas vezes o buzkashi. Um jogo antigo, praticado na
estepe por um povo que viveu e morreu sobre a sela. O próprio Genghis Khan o
apreciava. Na época, não era permitido às mulheres sequer assistir, quanto mais
participar. Mas ela mudara essa regra.
O
cavalo de pernas altas e peito largo enrijeceu-se quando ela acariciou seu
pescoço. Paciência, Bucéfalo. A ministra escolhera o nome em homenagem ao
cavalo que levou Alexandre pela Ásia, batalha após batalha. Mas os cavalos do
buzkashi eram especiais. Antes de participarem de uma única partida, anos de
treino os acostumavam ao caos do jogo. Além de aveia e cevada, ovos e manteiga
faziam parte da dieta. Por fim, quando o animal engordava, recebia rédea e sela
e ficava parado no sol durante semanas seguidas, não apenas para queimar os
quilos em excesso, mas para aprender a ter paciência. Em seguida, havia ainda
mais treinos em galope a curta distância. A agressividade era estimulada, mas
sempre com disciplina, para que cavalo e cavaleiro formassem um time. Está
preparada?, perguntou o empregado, um tajique nascido nas montanhas ao leste
que era seu criado há quase uma década, o único com permissão para prepará-la
antes do jogo. Ela bateu de leve no peito». In Steve Berry, A Traição
Veneziana, 2009, Publicações dom Quixote, Livros d?Hoje, 2013, ISBN
978-972-203-860-7.
Cortesia domQuixote/JDACT
JDACT, Literatura, Steve Berry, Narrativa,