Porque mataremos e seremos mortos no século XXI
«(…) O Eduard Bohlen se
enferruja hoje, semi-enterrado na areia do deserto da Namíbia e talvez tenha
chegado o momento em que o modelo completo das sociedades ocidentais, com todas
as suas conquistas de democracia, direitos humanos, liberdade, liberalidade, arte
e cultura, sob o ponto de vista de um historiador do século XXII, se demonstre
tão irremediavelmente deslocado como nos parece hoje a visão do velho navio
negreiro nadando no meio do deserto, um corpo estranho peculiar que dá a
impressão de se ter originado noutro mundo. Isso no caso de ainda haver
historiadores quando chegar o século XXII.
Este modelo de sociedade, tão
impiedosamente desenvolvido ao longo de uma guerra com a duração de um quarto
de milénio, tornou-se agora dominante, num piscar de olhos, no momento em que
seu caminho vitorioso atingiu um alcance global, no qual até mesmo os países
comunistas e aqueles que não eram exactamente comunistas foram incluídos, pela
atracção irresistível de padrões de vida em que os automóveis, as televisões,
os computadores de tela plana e as longas viagens determinaram as novas
fronteiras da sua actuação, produzindo consequências inesperadas que ninguém
havia calculado. As emissões de gás carbónico que a fome de energia das
indústrias e das administrações dos países de desenvolvimento descontrolado
produzem em níveis progressivamente maiores ameaçam os ritmos normais de
desenvolvimento do clima terrestre. Suas consequências já se tornaram visíveis,
embora o futuro ainda seja imprevisível. Ainda mais claramente agora, quando se
percebe que a utilização desmedida das fontes de energia fóssil não pode mais
ser continuada indefinidamente, uma vez que o fim destas reservas pode ser
esperado antes de muito tempo, já que o esgotamento de tais recursos é
inevitável, devido ao desinteresse pelas consequências e o descontrole com que
são queimados.
Mas não é somente porque as
transformações climáticas causadas pelas emissões de gases poluentes e que já
provocaram um aquecimento global médio da ordem de dois graus não pareçam mais
poder ser controladas que o modelo ocidental já atingiu os seus limites, mas
também porque uma forma de desenvolvimento globalizado que tenha por base o
consumo incontido de recursos naturais não poderá funcionar como um princípio
de abrangência mundial. Isto porque este modelo funcionou logicamente apenas
enquanto o poder de uma parte do mundo acumulou o que foi desviado de outras
partes; este modelo é particular e não universal, nem todos os países poderão
segui-lo doravante. Enquanto a astronomia não nos oferecer planetas próximos o
bastante que possam ser colonizados, chegamos à constatação desapontadora de
que a Terra é apenas uma ilha. Não teremos mais para onde nos expandir, depois
que as reservas tenham sido esgotadas e os campos de cultivo ocupados pela
urbanização.
Agora que os recursos restantes
claramente estão se esgotando, pelo menos em muitas regiões da África, da Ásia,
da Europa Oriental, da América do Sul, do Ártico e das Ilhas do Pacífico, surge
o problema de que cada vez mais pessoas encontrarão cada vez menores bases de
segurança para sua sobrevivência. Está ao alcance de todos a constatação de que
conflitos armados surgirão entre estes povos, para que eles possam se nutrir do
cultivo das próprias terras e das de seus vizinhos ou porque queiram beber das
fontes de água que progressivamente se esgotam nos seus territórios ou nos territórios
próximos; de forma semelhante, também se tornou visível para todos que as pessoas,
dentro de um futuro previsível, não mais tenham mecanismos práticos de contenção
dos refugiados de guerra e do meio ambiente, ao mesmo tempo que não se possam
mais separar deles, porque cada vez mais novas guerras provocadas pela decadência
ambiental surgirão e os povos fugirão para escapar às consequências da violência.
Uma vez que eles terão de permanecer em algum lugar, darão origem a novas
fontes de violência, nos seus próprios países, onde não saberão o que fazer com
os refugiados internos, ou nas fronteiras de outras terras que desejem
atravessar, mas onde não serão desejados de qualquer maneira.
O
objectivo deste livro é o de responder às questões provocadas pela maneira como
o clima e a violência se inter-relacionam. Em alguns casos, como o da Guerra do
Sudão, este relacionamento é directo e pode ser constatado de imediato. Em muitos
outros contextos de violência presente ou futura, no caso das guerras civis, de
conflitos permanentes, do terror, da imigração ilegal, das disputas fronteiriças,
das agitações e revoltas, predomina uma ligação com as modificações climáticas
e os conflitos ambientais de carácter apenas indirecto, especialmente no
sentido de que o aquecimento da temperatura provoca efeitos desiguais ao redor
do globo, dependendo da densidade demográfica, da situação geográfica e das
condições de vida, porque afecta as diversas sociedades de forma altamente
diferenciada. Porém, tomadas no seu conjunto, quer as guerras climáticas
assumam uma forma directa ou indireta, qualquer que seja a forma como se travem
os conflitos do século XXI, a violência terá um grande papel futuro ao longo
deste século. Não se verão somente as migrações em massa, mas soluções
violentas no enfrentamento dos problemas dos refugiados, que não abrangerão
apenas os direitos à água ou ao cultivo e exploração do solo, portanto, guerras
de recursos naturais e não somente conflitos de religião, ou guerras de consciência».
In
Harald Welzer, Guerras Climáticas, Porque mataremos e seremos mortos no século
XXI, LeLivros, Geração Editorial, 2010, Wikipedia.
Cortesia de LLivros/GeraçãoE/JDACT
Harald Welzer, JDACT, Clima, Conhecimento,