«(…) Disse-me que os meus serviços eram necessários, sem demora, para um trabalho que me obrigaria a afastar-me de Roma durante vários dias. Estás metido nalgum sarilho?, perguntei-lhe. Não sou eu!, rugiu ele. Parecia incapaz de falar num tom de voz aceitável numa casa cujos habitantes estavam todos a dormir. As palavras saíam-lhe da boca numa série de resmungos e ladridos, como alguém que falasse com um escravo rebelde ou com um cão desobediente. Não há língua mais feia do que o Latim, quando é falado desta maneira como ele se fala nas casernas, quero eu dizer, pois, por muito sonolento e muito entorpecido pelo vinho que eu estivesse, começava a fazer algumas deduções acerca do meu visitante não convidado. Disfarçado por trás da sua barba bem tratada, da sua túnica preta, austera mas de aparência dispendiosa, das suas botas de boa qualidade e da sua capa de pelúcia, detectei um soldado, um homem habituado a dar ordens e a ser imediatamente obedecido. Bem disse ele, olhando-me de cima a baixo, como se eu fosse um recruta preguiçoso que tivesse acabado de sair da cama e arrastasse os pés antes da marcha do dia. Vens ou não? Eco, ofendido com esta grosseria, pôs as mãos nas ancas com um ar carregado. Múmio lançou a cabeça para trás e resfolegou, num acesso de impaciência. Eu limpei a garganta.
Eco disse eu, traz-me um copo de vinho, por favor. Aquecido, se puderes; vê se os carvões ainda estão a arder na cozinha. Também queres um copo, Marco Múmio? O meu convidado franziu as sobrancelhas e abanou a cabeça rapidamente, como um bom legionário de guarda. Talvez um pouco de cidra aquecida? Não, insisto, Marco Múmio. A noite está fresca. Anda, segue-me até ao meu escritório. Olha, Eco acendeu-nos as lamparinas; ele prevê todas as minhas necessidades. Vem, senta-te, não insisto. Muito bem, Marco Múmio, presumo que tenhas vindo oferecer-me trabalho. No escritório, onde a luz era mais forte, percebi que Múmio parecia gasto e cansado, como se não dormisse bem há algum tempo. Agitou-se na cadeira, mantendo os olhos abertos de uma forma pouco natural. Passado um momento, ergueu-se e começou a andar de um lado para o outro e, quando Eco regressou com a cidra morna, recusou-se a aceitá-la. É o que faz um soldado encarregado de uma longa vigília: evita sentir-se confortável, com receio de que o sono o tome, contra a sua vontade. Sim disse por fim. Vim convocar-te...
Convocar-me? Ninguém convoca Gordiano, o Descobridor. Sou um cidadão, não sou escravo nem liberto de ninguém e, tanto quanto sei, Roma ainda é uma república, por muito estranho que isso pareça, e não uma ditadura. Outros cidadãos vêm consultar-me, pedir-me os meus serviços, contratar-me. E normalmente vêm durante o dia. Pelo menos aqueles que são honestos. Múmio parecia estar a esforçar-se enormemente por conter a sua exasperação. Isto é ridículo disse ele. Serás pago, evidentemente, se é isso que te preocupa. De facto, estou autorizado a oferecer-te cinco vezes aquilo que normalmente recebes por dia, considerando os inconvenientes da..., viagem disse ele cautelosamente. Cinco dias de honorários garantidos, mais o alojamento e as despesas. Ele captara toda a minha atenção. Pelo canto do olho, vi Eco erguer uma sobrancelha, aconselhando-me a ser esperto; os filhos das ruas aprendem a negociar com dureza. És muito generoso, Marco Múmio, muito generoso disse eu. Claro que talvez não saibas que os meus honorários aumentaram o mês passado. Os preços em Roma estão sempre a subir, com a revolta dos escravos e o invencível Espártaco a alvoroçar o campo, a espalhar o caos... Invencível? Múmio parecia pessoalmente ofendido. Espártaco invencível? Resolveremos isso rapidamente. Invencível quando se confronta com o exército romano, quero eu dizer. Os adeptos de Espártaco derrotaram todos os contingentes enviados contra eles; até enxotaram dois cônsules romanos, que regressaram a casa em desgraça. Suponho que quando Pompeu... Pompeu! Múmio cuspiu o nome.
Sim, suponho que quando Pompeu finalmente conseguir trazer as
suas tropas de Espanha, a revolta seja rapidamente ultrapassada... Só continuei
a divagar porque me parecia que a questão irritava o meu convidado, e eu queria
mantê-lo distraído enquanto fazia aumentar o meu preço. Múmio cooperava
gloriosamente, andando de um lado para o outro, rangendo os dentes, com um
olhar ameaçador». In Steven Saylor, O Abraço de Némesis, 1992, Bertrand Editora, 2008,
ISBN 978-972-251-707-2.
Cortesia de BertrandE/JDACT
JDACT, Steven Saylor, Literatura,