sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Theresa Breslin. Prisioneira da Inquisição. «Agora, descontraiu o rosto e segurou meu braço, vamos caminhar um pouco no jardim e poderá colocar flores na sepultura da mulher do mendigo»

Cortesia de wikipedia e jdact

Zarita

«(…) Eu estava prestes a bater, disse ele sem hesitação. Minha tia, intencionalmente, olhou para o corredor mais além dele. Que descortesia da irmã que está como porteira hoje não tê-lo conduzido pessoalmente aos meus aposentos. Eu recusei a ajuda de sua porteira, explicou o sacerdote, e disse-lhe que encontraria sozinho o caminho para a sua sala. Espero que não se importe. De modo algum, retrucou minha tia agradavelmente. Entre. A irmã Maddalena levantou-se. Vou trazer uma infusão de menta para refrescá-lo. O padre se instalou numa cadeira. Passa um dia agradável... ,conversando?, indagou-me. Minha sobrinha e eu rezamos enquanto trabalhamos, padre, respondeu minha tia. Ah, sim, Zarita é filha de sua irmã, não é mesmo? Posso ver a semelhança entre vocês, principalmente os olhos. Zarita é parecida com a mãe, e diziam que nós duas éramos como irmãs gémeas. Mas diga-me, padre, minha tia baixou o véu sobre o rosto, como andam as suas investigações? O padre Besian franziu a testa. Os muçulmanos fugiram, e os judeus se isolaram. Como deveriam, acrescentou. Temos sido convocados a arbitrar pequenas disputas, mas, até agora, ninguém nos forneceu qualquer informação séria a respeito de práticas heréticas. Alegro-me em ouvir isso. Mas eu não. Não? Não. Isso apenas significa que há coisas profundamente ocultas. Isso não significaria que não há nada impróprio por aqui? Tenho notado hábitos relaxados. Irmã Maddalena retornou com os copos cheios de água quente adocicada na qual foi colocada uma infusão de folhas de menta. O padre Besian apanhou o copo que lhe foi oferecido. Vejam, eis um exemplo do que digo. A bandeja sobre a qual servem essas bebidas é de origem árabe com escritos na linguagem deles. Sabem o que significa? Houve uma pausa que durou o tempo de uma batida cardíaca. Eu não saberia dizer.

Minha tia havia falado uma inverdade, se não uma mentira directa, certamente uma afirmação feita com a intenção de enganar o ouvinte, e fiquei imaginando como justificaria isso a seu confessor. Eu sabia que minha tia estudara árabe a fim de ler certos textos para que seus pacientes pudessem beneficiar do conhecimento superior que ela afirmava que os mouros tinham de medicina. Pode até ser alguma blasfémia trazida para o interior das paredes de um mosteiro e que ignoram. Como minha tia nada disse, ele ergueu seu copo. Esta bebida também é de origem moura. Minha tia pestanejou. Creio que vai descobrir que a própria rainha bebe uma infusão feita com folhas de menta. O padre Besian abanou a mão. Não cabe a alguém saber o que a rainha faz ou deixa de fazer. Esses são exemplos de irregularidades nesta cidade que me causam inquietação. Sua ordem não é reconhecida pela igreja..., isso por si só poderia constituir uma heresia, combinada com a falta de respeito mostrada na Santa Missa pelo criado de seu cunhado.

Minha tia levantou-se e foi até um armário no canto da sala. De lá, tirou uma caixa, a qual abriu. Entregou ao padre Besian o pergaminho que ela continha. Esta é a escritura do terreno deste convento-hospital, terras que me foram concedidas pela rainha Isabel para que eu pudesse fundar um hospital com um grupo de irmãs para cuidar dos necessitados. A fundação de minha ordem foi feita com sua aprovação. Nossa petição por reconhecimento, apoiada pela rainha, está no Vaticano à espera da atenção do Santo Padre. O rosto do padre Besian se comprimiu ao ler o pergaminho. Minha tia devolveu-o à caixa e fechou a tampa com um forte estalo. Se isso é tudo o que consegue encontrar de errado na nossa cidade, comentou decisivamente, um adulto com a mente de uma criança e uma freira que bebe chá de menta, receio que possa estar escarnecendo do trabalho da Inquisição (maldita). O corpo do sacerdote vibrou com raiva contida enquanto ele se levantava para ir embora.

Vejo essas transgressões como indícios de delitos mais profundos. Mas sou um homem paciente e determinado e vou descobrir o que as pessoas desejam ocultar. Houve silêncio entre mim e minha tia enquanto a irmã Maddalena conduzia o padre Besian para fora do convento. Eu senti medo, mas não entendi porquê. Minha tia se aproximou de mim e colocou os lábios perto do meu ouvido. Providencie para que a sua governanta, Serafina, sirva carne de porco no jantar de amanhã. Dei um sorriso intrigado. Meu pai não gosta de carne de porco. Nunca é servida em nossa casa. Sabe disso. Minha tia não retribuiu meu sorriso. Em vez disso, adoptou uma aparência muito séria e continuou falando num tom de voz bem baixo. Ouça, Zarita. Faça o que estou mandando. Diga a seu pai, em particular, que eu falei que isso deve acontecer. Ele entenderá e concordará. Agora, descontraiu o rosto e segurou meu braço, vamos caminhar um pouco no jardim e poderá colocar flores na sepultura da mulher do mendigo. Eu sei que gosta de fazer isso. Passear pelas trilhas bem cuidadas do jardim murado me acalmou, e passei algum tempo rezando ao lado da sepultura que eu zelava. A caminho de casa, porém, minha paz foi despedaçada. Fui recebida por Serafina, que veio correndo para mim enquanto me aproximava de nossa propriedade. Ela chorava e torcia as mãos. O que houve?, perguntei-lhe. Eles o prenderam! Os soldados da Inquisição (maldita) o levaram para ser interrogado. Quem?, indaguei. Quem foi levado para ser interrogado? Meu sobrinho, bradou, e caiu no choro mais uma vez. Eles prenderam Bartolomé». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.

Cortesia de EGaleraR/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,