Zarita
«(…) Em poucos dias a cidade de
Las Conchas mudou completamente. As lojas e as barracas da feira tornaram-se
muito mais silenciosas. Havia menos pessoas nas ruas, e as que saíam de casa
olhavam desconfiadas umas para as outras. Forasteiros, anteriormente bem-vindos
como estímulo para o comércio, agora eram evitados. Os pescadores árabes
partiram silenciosamente nos seus sambucos e não voltaram. Dizia-se que os
judeus tinham trancado as suas casas e permanecido dentro delas a noite toda e
a maior parte das horas do dia. Tínhamos sido uma cidade sossegada com um porto
razoavelmente movimentado. Agora éramos uma comunidade fechada onde vizinhos
mal se cumprimentavam ao se encontrar na rua. Para minha contrariedade, fui
impedida de fazer minha cavalgada diária. Garci disse-me que o pai lhe dera
instruções para que nem Lorena nem eu saíssemos da propriedade sem sua permissão.
Para evitar encontrar-me com o padre Besian, eu normalmente ia ao
convento-hospital após a missa de cada manhã e passava lá a maior parte do dia na
companhia de minha tia e suas freiras.
Independentemente de qualquer
consideração moral a respeito de uma religião ter ou não o direito de impor
suas regras sobre as de outra, os actos da Inquisição (maldita) estão
arruinando a economia de nossa cidade, comentou a irmã Maddalena, a suplente de
minha tia no convento, ao nos sentarmos certo dia na sala de estar, enquanto
preparávamos bandagens e conversávamos. Cuidado, irmã Maddalena, minha tia
olhou em direcção à porta, nunca se sabe quem está ouvindo. Irmã Maddalena, uma
mulher grande e agitada que havia criado uma família de dez filhos e enterrado
três maridos antes de dedicar sua vida a Deus, sacudiu a cabeça. Nossas irmãs
aqui jamais trairiam uma à outra, mas, de qualquer modo, não ligo para quem
ouve quando falo a verdade. As pessoas estão com medo de sair, de negociar, de
fazer qualquer coisa que possa ser interpretada como oposição à Igreja. Temem
que alguma pessoa intrometida as denuncie. Baixei a voz e disse: Acredita que
uma religião não tem o direito de impor suas regras à outra? Certamente, como
bons cristãos, é nosso dever evangelizar. É também o do rei e o da rainha,
rebateu minha tia cuidadosamente. A rainha Isabel, em particular, acredita que
faz a Vontade de Deus em sua missão de unir toda a Espanha sob a bandeira da
Cruz.
E o que diria o bondoso Jesus da
decisão dela de instituir uma Inquisição (maldita) que pode usar tortura ao
questionar um acusado? A irmã Maddalena bufou em escárnio. Ela acha que é
melhor sofrer na terra e alcançar uma paz eterna no céu. Irmã Maddalena
inclinou-se para mais perto. Meu primo de Saragoça contou que ela mandou que
seis criminosos fossem castrados, depois enforcados, arrastados e esquartejados
em público diante da catedral. Ela é uma rainha monstruosa, comentei com emoção,
capaz de permitir que muitos sejam condenados a uma morte tão terrível. Não tão
monstruosa, reflectiu minha tia. Ela é inteligente e possui uma certa bondade,
principalmente em relação à família e aos amigos, mas, quando resolve fazer uma
coisa, ela tem de ser feita. Tem de reconhecer que, quando ela herdou o trono
de Castela do meio-irmão Henrique, assumiu um reino arruinado. Durante seu reinado,
Henrique concedera favores a homens e mulheres malvados e venenosos. A corte
era apenas uma instituição que buscava o prazer, com pouca distribuição de ordem
ou justiça. Bandidos vagavam pelas terras. Não havia leis. Isabel mudou isso, mas
o nível de corrupção era tal, mesmo entre os nobres, que ela teve de ser implacável
para fazer isso. Tem sido criticada pela falta de piedade, mas agora os lavradores
podem cultivar suas terras e colher as safras, e viajantes podem circular pelas
estradas sem serem molestados. A conhece!, exclamei.
Minha tia confirmou com a cabeça.
Conheci. Anos atrás, passei algum tempo na corte e sei que a vida dela não tem sido
fácil. Quando criança, foi mantida num castelo sombrio, protegida e orientada apenas
por uma austera e, segundo alguns, enlouquecida mãe. Foi influenciada por seu
confessor, um fanático, e acho que ainda é o caso. E acredita nessa missão da
rainha e do rei?, perguntei. Minha tia abriu a boca para responder, mas parou e
pendeu a cabeça num gesto de quem está ouvindo algo. Ergueu a mão e colocou o
dedo sobre os lábios. Então, levantando-se rapidamente, avançou e abriu a
porta. O padre Besian estava parado ali». In Theresa Breslin, Prisioneira da
Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,