«(…) Gudrun gemeu novamente, torcendo-se com dores, mas o cónego não levantou os olhos do livro. Um homem duro, pensou Hrotrud. Mas deve ter algum fogo nos quadris, senão não a tinha tomado por esposa.Há quanto tempo tinha o cónego trazido a mulher da Saxónia para casa: há dez Invernos, talvez há onze? Gudrun não era jovem, para o que era costume entre os francos, talvez tivesse vinte e seis ou vinte e sete anos, mas era muito bonita, com os longos cabelos louros e os olhos azuis das alienigenae. Tinha perdido toda a família no massacre de Verden. Nesse dia, milhares de saxónios tinham preferido morrer a aceitar a verdade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Bárbaros loucos, pensou Hrotrud. Comigo, não teria sido assim. Ela teria jurado tudo quanto lhe pedissem. Fá-lo-ia, aliás, se os bárbaros alguma vez voltassem a passar pela terra dos francos, juraria fidelidade a todos os deuses que eles quisessem, por muito estranhos ou terríveis que fossem. Isso não alterava nada. Quem poderia saber o que se passava no coração de alguém? Uma mulher sensata tinha ideias próprias. O lume faiscava, lançando chispas. Hrotrud dirigiu-se à pilha de lenha arrumada a um canto, escolheu dois ramos de vidoeiro de bom tamanho e meteu-os na lareira. Ficou a observar, à medida que eles ardiam, sibilando, e as labaredas os devoravam. Depois, voltou para junto de Gudrun para ver como ela estava.
Tinha passado uma boa meia hora
desde que Gudrun tinha mastigado as aparas de astrágalo, mas o seu estado não
se tinha alterado. Nem sequer um medicamento tão forte como aquele tinha
conseguido fazer efeito. As contracções continuavam a ser irregulares e sem
resultado e Gudrun continuava a enfraquecer. Hrotrud suspirou, cansada. Era
evidente que tinha de tomar medidas mais enérgicas. O cónego demonstrou ser
mais um problema, quando Hrotrud lhe disse que necessitava de ajuda para o
parto. Manda chamar mulheres à aldeia, disse ele, peremptoriamente. Ah, senhor,
isso é impossível. Quem poderia ir buscá-las? - Hrotrud ergueu as mãos ao céu. Eu
não posso ir porque a vossa mulher precisa de mim aqui. O vosso filho mais
velho não pode ir porque apesar de parecer um rapaz que promete, poderia
perder-se na tempestade. Eu quase me perdi. O cónego deitou-lhe um olhar
fulminante. Muito bem, disse ele. - Eu vou. Quando se levantou da cadeira,
Hrotrud abanou a cabeça com impaciência.
Não
adiantava nada. Quando tivésseis regressado, já seria tarde de mais. É da vossa
ajuda que eu preciso, e depressa, se que reis que a vossa mulher e o bebé
sobrevivam. Da minha ajuda? Estás doida, mulher? Isso, e apontou, enojado, para
a cama, é coisa de mulheres, é impuro. Recuso-me. Então, a vossa mulher vai
morrer. Isso está nas mãos de Deus, não nas minhas. Hrotrud encolheu os ombros:
Para mim, tanto se me dá. Mas não vos será fácil criar dois filhos sem uma mãe.
O cónego encarou Hrotrud: Porque hei-de acreditar em ti? Ela já deu à luz sem
problemas. Eu dei-lhe força com as minhas orações. Não podes saber se ela vai
morrer. Isto era de mais. Fosse ele cónego ou não, Hrotrud não toleraria que
ele pusesse em causa a sua competência como parteira. Vós é que não sabeis nada,
disse ela, asperamente. Nem sequer olhastes para ela. Ide vê-la agora e depois
dizei-me que ela não está a morrer.
O cónego aproximou-se da cama e
olhou para a sua mulher. O seu cabelo molhado estava colado à pele, que se
tinha tornado de um branco-amarelado. Os seus olhos, cercados de um traço
negro, estavam encovados; se não fosse o barulho profundo e irregular da sua
respiração, dir-se-ia que já estava morta. Então?, espicaçou Hrotrud. O cónego
voltou-se, para a encarar de frente: Que raio, mulher! Porque não trouxeste
mulheres contigo? Como vós dissestes, os partos anteriores não tinham tido
qualquer problema. Não havia nenhum motivo para pensar que agora houvesse. Além
disso, quem teria vindo com um tempo destes? O cónego dirigiu-se para a lareira
e pôs-se a andar de um lado para o outro, agitadamente. Por fim, estacou. O que
queres que eu faça? Hrotrud sorriu. Oh, pouca coisa, senhor, pouca coisa. Conduziu-o
de novo para ao pé da cama. Para começar, ajudai-me a levantá-la. Um de cada
lado de Gudrun, levantaram-na pelos braços. O seu corpo estava pesado, mas,
juntos, conseguiram pô-la de pé.
Ela oscilou e o seu corpo tombou
completamente na direcção do marido. O cónego era mais forte do que Hrotrud
tinha pensado. Isso era bom porque ela precisaria de toda a força que ele
tivesse para o que se seguia. Temos de forçar o bebé a descer. Quando eu
disser, levantai-a o mais alto que puderdes e abanai-a com força. O cónego
assentiu, com um esgar. Gudrun oscilava entre ambos como um peso morto, com a
cabeça tombada sobre o peito. Levantai-a!, gritou Hrotrud. Ergueram Gudrun
pelos braços e começaram a sacudi-la para cima e para baixo. Gudrun gritava,
lutando para se libertar. A dor e o medo tinham-lhe dado uma força
surpreendente. Os dois tinham dificuldade em controlá-la. Se ele me tivesse
deixado dar-lhe o meimendro, pensou Hrotrud. Agora, ela estaria meio
entorpecida. Eles voltaram a deitá-la, mas ela continuava a lutar e a gritar.
Hrotrud voltou a dar a mesma ordem e eles voltaram a levantá-la e a sacudi-la.
Depois, deitaram Gudrun na cama, onde ela ficou meio inconsciente, murmurando
palavras misteriosas na sua língua bárbara. Está bem, pensou Hrotrud. Se eu me
despachar, estará tudo terminado antes de ela recuperar os sentidos. Hrotrud
meteu a mão na passagem para o nascimento, tacteando a abertura do útero.
Estava rígida e inchada por causa de tantas horas de contracções inúteis.
Usando a unha do dedo indicador direito, que ela conservava comprida
precisamente para este efeito, Hrotrud rasgou a membrana resistente. Gudrun
gemeu, depois ficou completamente inconsciente». In Donna Woolfolk Cross, A Papisa
Joana, 2000, Editorial Presença, 2010, ISBN 978-972-232-641-4.
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