Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) O ponteiro do forno eléctrico,
ajustado para peru assado, oscilava entre quase e ao ponto. Logo, logo estaria na
hora de tirar. Nicolas apertou um botão verde, que accionava o medidor
sensitivo. Este penetrou sem encontrar resistência, e nesse momento o ponteiro
marcou ao ponto. Num gesto rápido, Nicolas desligou o forno e ligou o aquecedor
de pratos. Será que está bom?, perguntou Colin. Não tenha a menor dúvida,
senhor!, afirmou Nicolas. O peru estava perfeitamente calibrado. Que entrada o
senhor preparou? Meu Deus, disse Nicolas, para variar, não inovei coisa
nenhuma. Limitei-me a plagiar Gouffé. O senhor poderia ter escolhido um mestre
pior!, observou Colin. E que parte da obra dele vai reproduzir? Está na página
638 de seu Livro de cozinha.
Vou ler a passagem em questão.
Colin sentou-se num tamborete com assento capitoné de borracha alveolada, sob
uma seda que combinava com a cor das paredes, e Nicolas começou nos seguintes
termos: Faça uma crosta de patê quente para a entrada. Prepare uma enguia das
grandes e corte-a em pedaços de três centímetros. Leve uma panela, com vinho
branco, sal e pimenta, cebolas fatiadas, ramos de salsa, endro e louro, com um
dentinho de alho. Não consegui amolar o dente como gostaria, disse Nicolas. A
pedra de afiar está gasta. Vou mandar comprar outra, disse Colin. Nicolas
continuou: Ponha para cozinhar. Retire a enguia da panela e ponha numa
frigideira. Passe o molho por uma peneira de tecido, acrescente molho espanhol
e deixe reduzir até que fique aderente à colher. Filtre novamente, cubra a
enguia com o molho e deixe ferver por dez minutos. Acomode a enguia na massa.
Faça um cordão de cogumelos em torno da crosta, ponha uma pitada de sêmen de carpa
no meio. Regue com a parte do molho que ficou reservada.
Certo, aprovou Colin. Acho que o
Chick vai gostar. Não tenho a vantagem de conhecer o senhor Chick, concluiu
Nicolas. Mas, caso ele não goste, farei outra coisa da próxima vez, o que vai
me permitir situar-me, com quase certeza, na ordem espacial dos seus gostos e
desgostos. Zim!…, disse Colin. Vou embora, Nicolas. Vou pôr a mesa. Ele foi
pelo corredor no outro sentido e atravessou a copa para chegar à sala de
jantar-estúdio, cujo tapete azul-pálido e as paredes bege-rosadas eram um
repouso para olhos abertos. Daquela sala, de uns quatro metros por cinco,
via-se a avenida Louis Armstrong por duas grandes janelas. Espelhos sem aço
escorriam pelos dois lados e permitiam a introdução dos odores da Primavera
quando eles estivessem disponíveis do lado de fora. Do outro lado, uma mesa de
carvalho macio dominava um dos cantos do ambiente. Dois bancos em ângulo recto
correspondiam a dois lados da mesa, e cadeiras estofadas com almofadas de
marroquim azul ornavam os dois lados livres. A mobília incluía, além disso, um
móvel comprido e baixo, transformado em discoteca, uma vitrola hipermodulada e
um móvel, simétrico ao primeiro, contendo estilingues, pratos, copos e outros utensílios
de que o homem civilizado se serve para comer». In Boris Vian, Espuma dos Dias,
1946-1947, Editora Relógio D’Água, ISBN 978-972-708-644-3.
Cortesia de ERelógio d’Água/JDACT
JDACT, Boris Vian, Literatura, A
Arte,